quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Ninguém sai

Fiquei uns dias sem escrever o desafio dos trinta livros. Já me perdi.
Acho que estou no quinto livro, o que me faz rir.
O que me faz rir.
O que me faz rir?
Muitas coisas me fazem sorrir: observar minhas gatas brincando com o rato de pelúcia, observar meus cachorros ouriçados quando me veem chegar, um casal se beijando no ponto de ônibus, minha mãe brigando com meu pai por bobagens, os dois ainda apaixonados depois de mais de quarenta anos de convivência.
Me fazem sorrir a música, a amizade, crianças de colo, árvores florecendo, o som da chuva na janela.
Ah, a chuva na janela... Anseio pela chuva que virá, para lavar minha alma e me fazer sorrir, ao dormir com o som das gotas caindo e e levanddo a poeira e a aridez que me povoam nesses tempos.

Me fazem sorrir os livros.
Todos. Ao abrir a primeira página, depois de escolhido.
Aí, alguns me fazem chorar, outros me deixam indignada, outros me dão raiva, ouros, esperança.


Rir.
Um livro que me faz rir?

As comédias da vida privada.
Luiz Fernando Veríssimo.

A ironia, a destreza em trilhar os caminhos do cotidiano, e criar o riso nas situações corriqueiras ou absurdas.
Várias delas me fazem rir, como a do marido que perde a aliança no bueiro, cria mil desculpas já que acredita que a mulher não vai acreditar na verdade, e é perdoado ao inventar uma infidelidade.
A verdade não é crível.

Acho que minha crônica favorita é a do poquer. Cinco amigos. Uma mesa. Uma partida interminável.
Ninguém sai.



Cinco jogadores em volta de uma mesa. Muita fumaça. Toca a campainha da
porta. Um dos jogadores começa a se levantar.
Jogador 1 - Onde é que você vai ? Ninguém sai.


E a história prossegue, com desdobramentos absurdos.
Taí, um livro que me faz rir.
Obrigada por me lembrarem dele!


Também estão brincando:


Eu sou a Graúna
Pimenta com Limão
Mulher Alternativa
Pergunte ao Pixel
A Estrada Anil
Nem tão óbvio assim
Livros e opiniões
Mayroses

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Qual é o seu armário?

Sábado, dia 27 de agosto, aconteceu em BH a 7ª Caminhada pela Visibilidade Lésbica.
Desde algum tempo, venho participanto de diversos movimentos de luta contra a homofobia e a lesbofobia, e não poderia faltar à caminhada.
Chegamos na Praça 7 por volta das 14 horas, e ainda havia poucas pessoas na praça. 
Faixas e cartazes, em frente ao McDonalds, no mesmo dia do "McLanche Feliz" (feliz pra quem, cara-pálida?) e as pessoas passando, em uma tarde de sábado, voltando do trabalho, ou das compras ou indo para o templo do consumo do shopping Cidade... 
Reações diversas.

A caminhada começou por volta das quatro e meia da tarde, e foi curta, mas muito válida!

Mas não é sobre a caminhada que decidi escrever hoje.
No domingo, é dia do almoço em família. 
Fui para a casa dos meus pais, onde ajudei a fazer o almoço, e enquanto isso, tomava uma cerveja com minha mãe, na cozinha.
Ela me perguntou sobre o sábado, o que eu havia feito, essas coisas.
E eu disse que fora a uma caminhada.
Ela imediatamente perguntou se era dessas coisas de gays que eu ando frequentando (palavras dela). 
E eu disse que não era de gays, era de lésbicas, e sim, foi uma caminhada dessas.
Ela me olhou e disse:  "Minha filha, pode parar com isso!" 
Com um tom de preocupação e, não sei, advertência?
Talvez nem ela saiba o que desejava expressar com aquelas palavras.



Respondi para ela:
"Mãe, eu não sou lésbica. Mas tenho amigas que são, e uma delas, uma menina incrível, advogada, inteligentíssima, superbacana, esta passando por uma situação tão triste... os pais da namorada, que tem vinte anos, descobriram sobre o namoro e as proibiram de se ver. Imagina que tristeza??"

Minha mãe não é uma pessoa ruim. É conservadora, de família criada nos dogmas do catolicismo e naquilo "que os outros irão pensar-dizer". 
Depois da minha resposta, ela concordou que é um absurdo as pessoas serem proibidas de viverem juntas, de namorarem, de se amarem e demonstrarem isso. 
Mas ao mesmo tempo, quando vê os casais homossexuais nas novelas, ela ainda acha um absurdo, acha que "incentiva". Todos os dias que falamos sobre o tema, eu tento fazer com que ela supere o que lhe foi incultido durante décadas, pela família e pela igreja, e passe a sentir empatia.






Me pego pensando: nunca é cedo demais para aprender que meninas usam rosa e meninos usam azul, que meninas brincam de boneca e tem que ser magras e delicadas, e meninos jogam bola e brigam, e tem que ser fortes e atléticos.
Nunca é cedo demais para reproduzir sem perceber os conceitos culturais que foram construídos e que tanto afetam tanto as crianças como os adultos.
Por que discutir a diferença e o respeito pela diversidade seria "precoce" em jovens a partir de 14 anos, que seria o foco da campanha anti-homofobia?

Lésbicas sofrem preconceito todos os dias.
São visíveis somente para o fetiche do prazer masculino.
Campanhas com duas mulheres não empoderam as lésbicas, mas apenas "deleitam" os olhares masculinos, usando apenas de um padrão estético que oprime todas as mulheres, homossexuais ou não.
 


Eu não sei o que é ser lésbica, assim como não sei o que é ser negra. Mas sou capaz de sentir a dor do Outro.
Sou capaz de reconhecer e aceitar a diferença. 
E sou capaz dessa empatia, mesmo tendo sido criada em uma família tradicional.
Então, em certos momentos, perco totalmente a fé na humanidade.
É muita maldade, muita cegueira voluntária, muita estupidez.
Mas em outros, ainda consigo ver que existem pessoas que fazem o bem, pessoas que reconhecem a existência do Outro como semelhante, como iguais, como irmãos.

E nesses momentos, penso em que é que realmente está no armário embolorado fedendo naftalina...



Armário - Zeca Baleiro
Lembro quando você me falou,
dentro do armário,
só tem bolor e naftalina.
Vem já pra fora, meu bem,
que só aqui é que tem,
calor e adrenalina.

Voltei pra casa,
parei na porta,
pensei um pouco...
Nem morta!

Não posso, não posso,
já falei que eu não posso,
não é que eu não queira,
mas é tão difícil pra mim.

É claro que eu quero,
quero mais que tudo,
mas sinto tanto medo,
um medo absurdo!

Medo dos vizinhos,
medo da mommy,
medo do daddy,
e do meu irmão,
que já foi skinhead.

Oh, meu amor,
ninguém me faz tão feliz,
ninguém me fez tanto bem...

Mas já que eu não posso sair do armário,
peço que você entre no armário também...

Não posso, não posso,
já falei que eu não posso,
não é que eu não queira,
mas é tão difícil pra mim.

É claro que eu quero,
quero mais que tudo,
mas sinto tanto medo,
um medo absurdo!

Medo dos vizinhos,
medo da mommy,
medo do daddy,
e do meu irmão,
Que já foi skinhead.

Oh, meu amor,
você é tudo de bom,
ninguém me fez tanto bem...

Mas já que eu não posso sair do armário,
Peço que você entre no armário também...
 
Este singelo post foi escrito para a Blogagem Coletiva da Visibilidade Lésbica, convocada pelas Blogueiras Feministas.

Dê uma olhada lá, nas postagens das demais blogueiras participantes, e blogueiros também.
Mas não deixe de ler os posts da Inquietudine. São um alento, apesar da revolta que provoca ver uma pessoa incrível ter que enfrentar tantos obstáculos simplesmente para amar... 
Já pensou nos seus privilégios, hoje??

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Um céu cheio de préas...


Dia 4 – the first book that make you cry ...

Antes de começar a falar sobre o livro, um aviso e uma declaração:  Eu sou chorona.
Sou manteiga derretida mesmo. Choro, literalmente, em comercial de margarina. Ok, talvez não de margarina, mas confesso que choro com comerciais, daqueles tipo da Nestlé, de família feliz, com bichinhos e vovozinhas, e bebezinhos rechonchudos.

Chorei em “O Rei Leão”, chorei em “Avatar”, chorei em Harry Potter (nos últimos, né, gente...) e chorei em “Marley e Eu”. Chorei de raiva em “A Zona do Crime”, em “Carandiru” e em “Tropa de Elite” – juro que chorei!

E sou chorona desde criança. Minha avó dizia que minha facilidade para verter lágrimas me faria ser atriz de novela. Ela queria dizer que eu chorava por qualquer bobagem, e chorava mesmo: Chorava quando ela matava as galinhas para fazer o almoço de domingo, chorava quando os gatinhos  que eu pegava na rua não sobreviviam. Para ela, criada na roça, matando porcos e dando à luz em casa, toando gado e batendo a manteiga, bichinhos eram luxos, momices. Só mais velha ela se apegou a um gato, o Chico, que virou seu companheiro inseparável.

O primeiro livro que me fez chorar? Não me lembro, mas acho que foi “Vidas secas”.
Só de lembrar da Baleia meus olhos ficam rasos.
Baleia, a pobre cadela dos pobres retirantes.
Pensar em Fabiano, o sertanejo, bruto, se emocionando ao ter que sacrificar a cadela... pootz.
Então, pode até ser que tenha sido outro, mas o que me lembro mesmo de ter chorado de soluçar, foi esse. Fabiano, as crianças, Siá Vitória...
 E Baleia.
Vejo Baleia em cada cão magro e sarnento abandonado na rua, que eu não consigo resgatar.
Vejo Baleia em cada criança vendendo balas no sinal. Em cada miserável puxando um carrinho de catador de papel.
Vejo Baleia em mim.
“A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. (...) Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito. Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta: – Vão bulir com a Baleia? (...) Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme.”

É de chorar ou não?

A Lubisborboleta, a NiPimenta, a MariAlternativa e a Ritanil estão também no meme, que começou com a Tina Lopes, e ganhou hoje a adesão da Mayara.
Vem vc também, está delicioso!

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Nós, os sonsos essenciais

“Mineirinho”, de Clarice Lispector (crônica de 1978, publicada no livro “Para não esquecer”, Editora Siciliano).

"É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que esta doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: 'O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no Céu.' Respondi-lhe que 'mais do que muita gente que não matou'.

Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordem, e com horror digo tarde demais - vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu - que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for preciso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente - não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho - essa coisa que move montanhas e é a mesma que o faz gostar 'feito doido' de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador - em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porquê adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime . Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que os outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo - uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do S. Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muita séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno".

Essa crônica de Clarice Lispector me tocou muito.
Tanto tanto tanto, que sinto como se houvesse sido escrita para mim, que me faço de sonsa, para sobreviver nesse lugar onde em nome de nada, inocentes são presos e condenados, onde em nome de tudo que é possivel comprar, pessoas são humilhadas e sujeitas à exploração. 
Esse lugar não é meu.
Também eu quero o terreno.

Dia 3: o livro favorito da infância (Favorite book as a child)


Eu sempre que posso dou livros de presente para as crianças das minhas relações. Porque me lembro tão bem do bem que faz mergulhar em um mundo de fantasia, conhecer lugares, pessoas, épocas incríveis, personagens queridos, que vão nos acompanhar pela vida...
Um livro é um portal, um tapete mágico,  pó de pirlimpimpim, pó de flu, é vara de condão, é reino perdido e encontrado.
É o sol na tempestade, é a neve no deserto. É a campina gelada de Wisconsin trazida para o meio das Geraes, é a Inglaterra vitoriana em pleno século XXI.
É a Grécia antiga e todos os seus deuses e heróis. É a floresta tropical no meio da sala.
Um livro nas mãos de uma criança, é um jardim secreto, cheio de ninhos de pintassilgos, de ovos de passarinhos, seguros contra a ganância e a cobiça de meninos maus. É uma raposinha e um corvo domesticados, é uma ovelhinha bebê. É uma menina emburrada e zangada que aprende a diferença que faz um sorriso e aprende a gostar de si e dos outros. É um menino mimado e autoritário que queria morrer e decide viver para sempre.
É o antecessor do Menino do Dedo Verde de Druon, um camponês do Yorkshire, que ensina aos patrõezinhos o que é a vida, e através deles, ensina também aos adultos o que é estar bem na própria pele...
Por isso, meu livro favorito de quando criança é “O Jardim Secreto”, da Francis Hodgson Burnett. E vou confessar: ainda hoje gosto de reler e me deliciar. E voltar ao jardim secreto de uma infância feliz, cercada de amor, livros e bichos...

"Havia mesmo uma espécie de mágica com Dickon, como Mary acreditava. Quando ouviu o nome dele, o senhor Roach sorriu:
- Aquele ali ia se sentir em casa no palácio da rainha ou  no fundo de uma mina de carvão. E não é por falta de vergonha não. Aquele menino é maravilhoso."
Eu já escrevi sobre O Jardim Secreto e outros livros queridos da infância aqui.http://as-agruras-e-as-delicias.blogspot.com/2011/01/revolucao-em-mim-sobre-os-livros-da.html 


 *A Lu, a Marília e a Niara também estão participando da brincadeira. Checa lá!

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Shows e festivais

O Brasil entrou mesmo no circuito dos grandes artistas.
Pena que os grandes shows não entraram no circuito de todos os brasileiros...
Shows que antes ocorriam muito eventualmente, agora acontecem todo ano.
Com preços de arrancar o couro.


Porque, ainda que a gente tenha entrado no circuito, os preços ainda são muito altos, e em geral  os shows só acontecem no eixo Rio-SP. Na verdade, as vezes só em SP.
E aí não dá, né, para viajar todo mês, só para assistir a um show...
Se eu pudesse, eu iria... amo rock!
E se para euzinha, que trabalho, ganho relativamente bem, só tenho dois cachorros e duas gatas para sustentar, não rola de ir, imagine para o grosso da população? Para os jovens, que trabalham e estudam? Para quem não tem pai ou mãe bancando?

Ano passado, em 2010, eu fui ao Metallica, ao Guns, ao Bon Jovi e ao SWU.

Este ano, tem Rock in Rio, com Metallica de novo, tem Pearl Jam, tem Planeta Terra, tem SWU.
E acho que sou vou ao Pearl Jam.

Festival, de novo, para encarar, teria que ser com um artista ou banda fenomenal, que eu nunca houvesse assistido, que nunca houvesse tocado no Brasil, que valesse muito muito muito a pena.


Mas no Pearl Jam, eu vou! Não fui no último, e Eddie Vedder e o PJ são ícones da minha adolescência, quando Nirvana e PJ comandavam o grunge, e a gente saia de coturno e camisa xadrez, tomando bebida barata e curtindo horrores...
Será que está na hora de "crescer" e parar de agir como adolescente, indo a shows de rock?
Bem, já que não morri jovem, agora vão ter que aguentar uma balzaquiana que ainda usa coturno de vez em quando, camiseta de banda e adora um showzaço!
E tenho dito!

Dia 2: Um livro do qual não gosto - Só por isso


O primeiro post foi bem difícil porque era para falar sobre  o livro preferido de todos os tempos. Comecei pensando em um, e no fluir do texto, acabei percebendo que era outro...
Eu adoro livros. Adoro o conteúdo, o suporte físico, as capas, a sensação de abrir pela primeira vez um livro novinho e quebrar, com muito pesar, a lombada, ou de abrir, cuidadosa, um livro velho e querido, com as páginas amareladas soltando-se da encadernação. Então, me sinto até traiçoeira em pensar em dizer um livro do qual não gostei, especificamente. Como se estivesse abandonando um amigo. Porque meus livros são meus amigos mais fieis. Minto, meus bichos são meus amigos mais fiéis. Meu livros são meus amigos de qualquer hora. E seu eu peguei um livro, por qualquer que seja o motivo, e o li, ele teve seus bons momentos, me fez companhia em um momento de solidão ou tédio pura e simplesmente.
Alguns livros são ruins, mas nem por isso são detestáveis.
Outros, por outro lado, são bons. Mas me fazem mal.
Não gosto de livros de auto-ajuda. Não gosto de livros “psicografados”. Não gosto de Paulo Coelho, Dan Brown ou Jô Soares. Tem um monte de livros ruins, dos quais não gostei. O problema é que nenhum deles me marcou a ponto de lembrar sequer seus títulos ou autores. Como um cara que beija mal, evito até lembrar o nome e as circunstâncias...
Se eu tenho que realmente dizer, diria que não gosto de Valsa Negra, da Patrícia Melo. Entendam, eu adoro Patrícia Melo. De verdade. “O matador” está entre os meus preferidos recentes, adoro os personagens, os conflitos, a perfídia... “O elogio da mentira” também é um bom livro, gostei bastante e recomendo.
Mas “Valsa Negra” me fez mal. Então, pelo mesmo motivo pelo qual atualmente “O sol é para todos” é o meu preferido, teria que dizer que não gosto de “Valsa Negra”. Porque não tem redenção. Porque não gosto do Maestro. E porque o ciúme é um sentimento corrosivo. Pronto. Por isso. Só por isso. 

O ódio é indistinguível do amor”.
“Entrei no carro e olhei para o céu. Seria um dia ruim.”
“Estar com ela era ter, no mesmo pacote, coisas ruins e boas. Mais ruins do que boas, essa era a verdade.”
Por isso, e só por isso, trata-se de um excelente livro, realmente denso, tenso. Do qual eu não gostei.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Um mês, trinta livros: o primeiro dia, o livro favorito!

Começar este memezinho vai ser desafiador. Porque o primeiro dia já pede para a gente escrever sobre o livro favorito de todos os tempos...
 
Day 01: All-time favorite book

E aí que é quase impossível escolher entre todos os meus livros favoritos, o favorito de todos os tempos.
Porque cada época tem o seu favorito. 

Desde que me entendo por gente, tenho um livro embaixo do braço. Sempre fui introspectiva. 
Sempre gostei de ficar em casa, lendo. Já deixei de ir a festinhas infantis, quando criança, ou passeios a casa de parentes, para ficar na casa de minha avó Maria, lendo e fazendo companhia a ela, que não gostava de sair... E naquela época, meus favoritos eram os da coleção Vagalume. Já então, era dificil escolher um favorito. 

Vinte anos, muitos livros depois, me vejo agora tendo que indicar um... Sinto um aperto no peito, como se ao apontar um, estivesse ignorando os outros... Mas, como teremos mais vinte e nove dias pela frente, vou encarar o teste e falar sobre o meu livro preferido de todos os tempos, hoje! É como se fosse tudo ao mesmo tempo, agora!

...
Dei uma pausa, fumei um cigarro, e enquanto isso, tentava pensar no livro favorito de todos os tempos...

Difícil, porque um livro é, de certa forma, uma definição de nós mesmos. E é difícil se definir, se auto-definir.

Os livros, a presença deles, o cheiro, o peso, a capa, e claro, o conteúdo, sempre me acompanharam. Antes de saber ler, usava a enciclopédia Barsa, eu e meus irmãos, para fazer castelos e pontes. Adora também ver as figuras e acompanhar os mapas, tentava descobrir onde estávamos, naquele mapa mundi da enclopédia Britanica. Taí, uma coisa que sempre me rodeou, os livros. Meu pai estudou história, minha mãe, pedagogia, sempre tive livros, jornais, revistas ao meu redor. Hoje vejo que privilégio tivemos, eu e meus irmãos.

Nas férias, ia para a cidade dos meus pais, no interior, e depois que comecei a usar óculos, uma miopia forte, aos 9 anos, minha introspecção aumentou ainda mais. Aliada à fome de ler, deixava de ir para vários lugares ao ar livre para ficar sentada na varanda, lendo.

Nessa época, já havia descoberto o paraíso das bibliotecas públicas. E Itaguara tinha (tem) uma boa biblioteca. Lá, mesmo nas férias, passava horas e horas descobrindo novos autores, novas leituras. 

Eu era, para os parentes e alguns colegas, a nerd, a CDF, que preferia ficar em casa lendo do que passeando na praça, no comecinho da pré-adolescência.

Mal sabiam eles, que nos meus livros, era a aventureira, a heroína, o bandido, o vilão, a bruxa Morgana, a espiã dos romances de banca, o guerreiro tupinambá de O Guarani. Era Ceci, era Lucíola, era Emília e Narizinho, era o Coração de Onça, era Atena e Hércules... Fui Monica, fui Cebolinha, e fui até a barata de Kafka. Fui princesa medieval e vilã de Sidney Sheldon. Fui Drácula de Bram Stoker e fui Pandora de Anne Rice. Ainda sou. Fui Penélope e fui Ulisses, lendo a Odisséia. Fui Aticcus Finch e fui Boo Bradley, mas sempre serei Scout "Jeane Louise Finch"....

Puxa, já enrolei tanto, e não defini ainda o meu livro preferido!

Então, vamos ao que interessa:

O sol é para todos, de Lee Harper

Na verdade, eu comecei o post pensando em outro livro, mas quando fui escrevendo e sem pensar muito em todos os personagens que já fui, me saltou a linda obra da Harper Lee...

Ganhei de presente de Natal, em dezembro de 2006. Desde então, sempre o tenho por perto. 
A cada vez que o releio, penso em como é atual, em como é triste e em quanto é belo.
E porque eu sempre sempre busco a possibilidade de redenção, eu amo O sol é para todos.
As crianças que contam uma história tão triste, mas tão triste, com seus olhos infantis e verdadeiros. 
A criança que denuncia a hipocrisia, a falsidade, a crueldade de uma sociedade...

Então, por ainda hoje, querer eu também ser Jean Louise "Scout" Finch e querer que existam Aticcus Finchs na vida real, eu escolho "O sol é para todos", porque é sempre um pecado matar um rouxinol... 

Aí está, o meu livro preferido de todos os tempos....
Sei que daqui um mês, pode mudar, como tudo pode mudar.

Amanhã, é o dia do livro preferido da minha infância. Já começou o dilema... 

********

Depois que publiquei, fui ler o post da Lu, na Graúna, porque, né, se eu leio antes não tenho nem coragem de escrever... rs Mentira, tenho sim, sou atrevida!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Um mês, trinta livros! - copiado da Lu



Copiando do Eu sou a graúna que viu no Pergunte ao Pixel, vou copiar também!
Um mês, trinta livros!


 Day 01: All-time favorite book

Day 02: A book you don't like

Day 03: Favorite book as a child

Day 04: The first book that made you cry

Day 05: A book that makes you laugh

Day 06: A book by your favorite author

Day 07: A book you hated but had to read for school

Day 08: Scariest book you’ve ever read

Day 09: Saddest book you’ve ever read

Day 10: Favorite classic

Day 11: Favorite animal book

Day 12: Favorite sci-fi book

Day 13: A book that reminds you of something/sometime

Day 14: A book that reminds you of someone

Day 15: Favorite holiday book

Day 16: Favorite book that was made into a movie

Day 17: A book that’s a guilty pleasure

Day 18: A book no one would expect you to love

Day 19: Favorite nonfiction book

Day 20: The last book you read

Day 21: The best book you’ve read this year

Day 22: Favorite book you had to read for school

Day 23: The book you’ve read the most times

Day 24: Favorite book series

Day 25: A book you used to hate but now love

Day 26: A book that makes you fall asleep

Day 27: Favorite love story

Day 28: A book you can quote by heart

Day 29: A book someone read to you

Day 30: A book you haven’t read yet but want to


Como não estou postando nada esses dias, vamos nos obrigar a escrever e treinar a memória e buscar os sentimentos?

Começo amanhã! http://eusouagrauna.blogspot.com/

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Bolha (ou por que eu escolhi a p... da pílula vermelha?!?!)

Segundas-feiras tem o dom de me deprimir.
Tanta coisa para fazer, tão pouco tempo, tão pouco ânimo.

Frustração em cima de frustração.

Não, não aconteceu nada de significativo, só que vindo para casa, na hora do almoço, vi um viralatas magrelo e desnutrido se esforçando para fazer suas necessidades, no meio da rua. Em tempo de ser atropelado. E meu coração cortou de dor.


Quando leio as notícias, quando leio os comentários, quando vejo que batalhas já travadas se repetem, com os mesmos resultados, como em um jogo de cartas marcadas, fico cansada.

Cansada de estar no lado perdedor.
Cansada de pensar.
Cansada de não fazer nada, cansada de chorar e ranger os dentes e não ver nada de novo sob o céu.

Queria andar distraída, colhendo sorrisos pelas esquinas, dando bom dia aos desconhecidos na rua, acariciando os cães viralatas e recolhendo as crianças abandonadas.

Queria andar abstraída.
Abstraída de um mundo que cada dia mais se fragmenta e desaba.

Queria ter escolhido a pílula azul, e ficar, placidamente, olhando as ruínas ao meu redor, não me preocupando com nada além do sexo dos carros e a dificuldade de achar empregada....

Queria ser uma classe média esterotipada, tão alienada como ninguém consegue ser (ou consegue?)

Rir de piadas preconceituosas e pior, piadas sem graça.
Rir da desgraça alheia, sem perceber que estamos todos juntos na mesma merda, boiando em um lamaçal fedorento de ganância, alheamento, egoísmo, individualismo... precoceitos e discriminações, ódio e intolerância. Pagamos o bem com o mal, e o mal, com ainda mais mal.

Tem dias, como esse, nos quais eu quero mesmo é que a humanidade acabe, e os animais voltem a dominar o planeta.
Que um ecoterrorista criasse um supervirus mortal para humanos, mas inócuo para plantas e animais, e todos nós, esse gigatesco erro da natureza, virassemos alimento para os cães e gatos abandonados e sujeitos à crueldade, nas ruas das grandes e pequenas cidades.

Imaginem, que lindo, todos os humanos, apodrecendo nas ruas, virando comida de urubu? (claro que esse vírus não poderia ser transmitido pela carne morta, né, meu ecoterrorista imaginário?)

E não pode sobrar ninguém, Nenhum ser humano, nenhuma criança, mulher ou homem.
Porque nós conseguimos ferrar com tudo. Sempre iremos ferrar com tudo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Marias, Teresas, Gabrielas... Todas "maria da penha"

Há cinco anos.
Setembro de 2006. 
Plantão policial.
Primeiros dias de vigência da Lei 11.340, promulgada no dia 07 de agosto daquele ano.
Lei "Maria da Penha".
A partir do dia 22 de setembro de 2006, homem que batesse na mulher seria preso.
Seria?

Dez da noite. Chega a primeira ocorrência.
A mulher, com um hematoma no supercílio e marcas nos braços, por onde fora segura pelo companheiro e sacudida. Na frente dos filhos, de cinco e oito anos.

Chegou embriagado, agressivo.
Os militares, já na expectativa de ficar horas aguardando a lavratura do flagrante.
A mulher, assustada mas decidida: queria que ele ficasse preso.

Duas outras situações na frente do registro da agressão. Tráfico e roubo.
Flagrantes demorados.

A mulher, vamos chamá-la de Teresa, começou a ficar preocupada com os filhos em casa, com vizinhos. Não podia chamar ninguém da família, esse tipo de coisa se resolve em casa, não na polícia, não incomodando os vizinhos, dando motivos para falatório.

Finalmente, por volta das duas da manhã, começa o flagrante. 
O agressor já estava mais calmo, passara o efeito da cachaça de sexta-feira.
A vítima já estava envergonhada, afinal, tudo não passara de um grande mal entendido.

As crianças, sozinhas em casa...
Os militares foram ouvidos, e foram embora. Estavam ali já fazendo hora extra, o turno já terminara há mais de uma hora.

O marido disse que chegou em casa, do bar, e não tinha jantar pronto. Que trabalhava o dia todo, e tinha direito de tomar uma cachacinha pra relaxar antes de ir pra casa. Que ao chegar, em vez do jantar pronto, encontrou a mulher brava por causa da demora, com ciúmes. Disse que ela começara a jogar as panelas no chão, e gritar igual uma louca, e que ele só a segurou. Que ela se soltou e caiu, batendo a cabeça na pia, por isso se cortou. Que os vizinhos ouviram a briga e chamaram a PM, por causa do barulho. E que ela gritava que ele seria preso, porque deu no jornal que tinha uma nova lei aí...

A mulher disse que o marido chegou bebado, querendo comida, e começou a jogar as panelas no chão. Que de repente agarrou-a pelos braços, e a sacudia. Que ela conseguiu se soltar, e tentou correr para o quarto, e ele a puxou, fazendo com que caísse. Que quando viu o sangue, ficou mais calmo e pediu desculpas. Que os vizinhos já tinham chamado o 190 e quando a polícia chegou, disse que tinham que ir para a Delegacia.

A mulher pede para que o homem seja solto, que é bom pai, bom marido, só fica assim quando bebe, sabe, moça...

Diz que ele é trabalhador. Que não é bandido. Pergunta, chorando, se ele vai ficar preso com os bandidos...

A fiança é arbitrada. Mínimo legal. Ela chora. Não tem como pagar.

Antes de, envergonhada, dizer que não tem dinheiro para voltar para casa (quase quatro da manhã), e a delegada, iniciante, comovida e ela também envergonhada, pois não tem gente suficiente para mandar a viatura levar a vítima para casa, pede para uma equipe da PM que estava saindo para levar Teresa em casa.

Oito da manhã.
O marido, já completamente curado, está acanhado e tímido, no canto da cela, junto com os dois assaltantes. Os do tráfico eram menores, não ficam na cela com os adultos.

Quase entregando o turno, chega Teresa, com o dinheiro da fiança.
Chinelo de dedo, traz para o marido um par de sapatos (ele estava descalço quando a polícia chegou).

A delegada, novata, fica revoltada com Teresa. Como assim, pagar a fiança dele? Ele te bateu!!!

E Teresa, humilde, fala: "Mas eu não tenho para onde ir"

E a Autoridade Policial, que leu toda a lei Maria da Penha para fazer tudo direitinho, fica sem palavras e sem reação.

O escrivão coleta a fiança, os agentes liberam o marido, e saem, Teresa e seu algoz, cabisbaixos, de volta ao lar e aos filhos.

E a equipe se despede, entrega o turno para a próxima Delegacia de Plantão e vai descansar ou trabalhar mais. 

A delegada chega em casa, e solta todas as lágrimas que segurou durante toda a noite, toma um banho quente, se deita, e tenta dormir. 

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Semana passada.

Quase cinco anos da Lei "Maria da Penha".

Plantão policial. Mesma sala, mesma falta de estrutura. Quase as mesmas faces. Roubo, tráfico, porte de arma, "Maria da Penha".
As ocorrência de violência doméstica agora são chamadas de "maria da penha".
Chegam em uma média de três ou quatro por noite, dependendo da noite, mais, dependendo, menos. 
Domingo é o pior dia. 
Os policiais chamam de "efeito Fantástico", por causa do fim do fim de semana.
As vezes tem ainda o agravante do futebol, o time perde, a mulher apanha.

A delegada não é mais a mesma.
Não tão novinha, não tão inocente.
Criou uma casca.

Mas nesse plantão, Gabriela chegou, com o supercílio cortado, marcas de dedos nos braços. 
A mesma cara de assustada.

As "marias da penha" não tem cor, credo, classe social.

Gabriela chegou, e não havia ocorrências na frente. 
Pediu para falar com o delegado.
Disse que não queria que o companheiro fosse preso.
Que foram os vizinhos que chamaram a polícia.
Que ela ia deixá-lo, mas não queria que ele fosse preso.

A delegada, já calejada, perguntou então se ela tinha para onde ir.
Família, amigos.
Ela disse que não. Mas que trabalhava, e que daria um jeito.

A delegada pensou que a lei, depois de cinco anos, ainda gera dúvidas por aí, sobre a necessidade ou não de representação para a lavratura do flagrante.

Gabriela não queria assinar. 

A delegada propõe um abrigo.
Faz dezenas de ligações e consegue uma vaga, para Gabriela e os três filhos.
Por fim, pede, por favor, aos PMs que fizeram o registro, que levem Gabriela em casa para buscar os filhos e roupas, e os leve ao abrigo. O cabo liga para o sargento, que liga para o tenente, que autoriza.

O marido, ainda bebado, fica sentado, só olhando a movimentação.

O cabo me pergunta se não vai ter flagrante. Eu digo que não, que a vítima não quer.
Ele diz que é sempre assim, que nunca dá em nada, que essas mulheres não tem vergonha...
A delegada engasga, quer falar que não é tão simples assim, mas... fim de plantão, cansada, física e emocionalmente.

Eles saem, e ao fim de uma hora, ligam para a delegacia, dizendo que Gabriela já estava no abrigo, com os filhos.

A delegada vai falar com o marido.
Ele diz que não bateu, não ameaçou, que foi só uma discussão. Que Gabriela tem ciúmes e só quer o seu dinheiro. Que a casa é dele, e que ela não tem direito.


A delegada se arma com os últimos fiapos de paciência, e diz que ela já deixou a casa, mas que o juiz decidira sobre os bens. Que se ele fizer algo com os pertences de Gabriela, será crime. E diz que por ela, ele ficaria preso, mas... Ele se cala. Pergunta se pode ir. É liberado.


A delegada chega em casa, toma um banho. Senta para ver tevê, e pensa na merda que é essa sociedade machista, onde a lei que foi feita para proteger as vítimas da violência doméstica já foi julgada inconstitucional por um juiz que não foi punido, só ficou afastado, recebendo vencimentos.


Está passando Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais.


E a delegada dorme com a tv ligada, sonhando que um dia o sistema vai funcionar.


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As situações são verídicas.
Só foram alterados os nomes.


A lei 11.340/06 completou cinco anos de vigência.


Algumas coisas mudaram. 
Hoje já existem abrigos, um centro de referência.


Mas ainda existem dúvidas sobre a necessidade de representação da vítima.
Sobre a aplicação de penas substitutivas.


E ainda demora, as vezes meses, para que o Judiciário conceda medida protetiva de urgência.


Ainda são mortas dez mulheres por dia, por seus companheiros e ex-companheiros.


Ainda existem pessoas que acham que "em briga de marido e mulher não se mete a colher".
Que tem mulher que "gosta" de apanhar.
Que a lei é injusta, pois os homens também são vítimas de violência doméstica, e não existe lei "João da Penha".

Então, pela efetividade da lei "Maria da Penha" e pelo fim da violência contra a mulher, a luta tem que ser diária, em todas as frentes. 

Este post foi escrito para a Blogagem Coletiva "Lei Maria da Penha", promovida pelas Blogueiras Feministas.