domingo, 15 de janeiro de 2012

Conto escuro

A logística foi mais difícil de ser planejada que de ser executada.
Conseguir a identidade falsa, a peruca (tão clichê). A arma.
Descobrir o endereço não foi nada difícil. Vigiar o lugar foi meio tenebroso, mas ao mesmo tempo, divertido.
Ver você chegar, sair, voltar. Sem saber que eu estava ali.
Cheguei a ter pena. 
Cheguei? Na verdade, não.

Meu plano era perfeito. É perfeito. 
Ninguém nunca saberá quem você irritou mais, quem teria tempo, oportunidade, motivo suficiente para ir parar naquele fim de mundo, naquela portinha, em um carro alugado naquelas agências que não ligam pra nada se vc pagar em dinheiro. Imagino que elas tenham suas formas de recuperar o carro, se eu não devolver. Mas eu vou devolver. Claro que vou. Não vou roubar nada, só terminar um assunto espinhoso.

Duplo homicídio. Duas balas, direto na cabeça. Nuca. Estilo execução. Acho que o fato de você continuar a fumar o seu baseado vai ajudar na investigação. Na dúvida, eu levei um bom pacote, para não deixar dúvidas. Nem precisei deixar na cena, o seu já fez efeito suficiente. Acho que ela devia gostar também, de um jeito que eu nunca curti.
O sangue tem um cheiro doce. E os miolos não se espalharam tanto. Eu devia ter escolhido uma doze, se queria mais bagunça. Mas um três-oitão é tão eficiente quanto, e faz bem menos volume  na bagagem.
O sangue é viscoso. Lembra que eu te falei, que parecia grosso, naquele duplo homicídio da praça? Mesmo antes de coagular, e claro que não fiquei aí tempo suficiente para deixar coagular. Saí logo depois dos disparos, de conferir a pulsação e ter certeza do fim. Do seu fim. Ela? Ela foi “efeito colateral”, na guerra, inocente morre. Não precisava ser ela, sabe. A outra serviria melhor ao meu propósito.
Teria sido perfeito, na verdade, se fosse a outra, aquela. Podia servir melhor ao meu plano, seria o motivo perfeito para outra pessoa ter feito o que EU fiz.
Lembra, como a gente ria, combinando um assassinato em massa? Você nunca achou que eu seria capaz. Mas eu sou. Eu fui. E seu olhar de ódio impotente, nossa, como me encheu de deleite! Eu tive até tesão, ali, naquela sala, com vocês dois me olhando, com ódio, com medo, com dúvida. Dúvida sobre o que falar, sobre como agir, sobre como reagir à minha frieza e indiferença. Nada me faria parar, ela percebeu antes de você.
Você achava que me desvendava, mas nunca me conheceu. Tanto quanto eu te inventei, você me inventou. Inventou a primeira, a que te encantou, e inventou a última, a que você deixou. Você nunca soube quem eu realmente sou.
Eu sou má. Eu sou capaz de matar. E de me safar de homicídio.
Eu matei você.

Antes de voltar, eu joguei fora a arma. Numeração raspada, comprada em um posto na beira da estrada. Engraçado como quem me vendeu me temeu. Claro que quem vende uma arma sabe o que quem comprou vai fazer. Contra si ou contra outro. E aquele, aquele nunca mais vai vender arma nenhuma pra ninguém. (Afinal, eu precisava testar a mercadoria.)
Saí dali, deixei o carro no hotel fuleiro onde me hospedei. Peguei um táxi e fui para o terminal. Ônibus de volta, e dali, direto para o aeroporto.
Eu sabia, ah, como eu sabia, que nunca iriam chegar até mim.
Nunca ninguém saberia que eu estourei seus miolos.
Crime hediondo...
As família inconsoláveis.
A conclusão da polícia é que foi um acerto de contas de drogas.
E eu, em Paris, sentada na calçada e fumando um cigarro.
A fumaça, suja e fedorenta, me envolve como um casulo. E eu rio, meio sufocada com a simplicidade da morte. E tomo outro gole de vinho tinto.
Minhas mãos tremem. 
Espirro uma gota de vinho na toalha branca.
É o frio, digo a mim mesma. É o frio.


* Inspirado no conto da Borboleta, O céu negro de Lucy

sábado, 14 de janeiro de 2012

As mentiras

Disseram que  eram feitos um para o outro.
Disseram que eram almas gêmeas.
Disseram que se completavam.
Disseram que os opostos se atraiam.
Disseram, enfim, as mentiras de praxe.
Disseram que conversariam sobre tudo, e que seria só enquanto fosse bom.
Disseram, como disse, as mentiras de praxe.
Acabou que não eram assim perfeitos um para o outro, como sempre se soube.
Disseram então algumas das verdades que surgiram no caminho.
Algumas meias verdades também. Ou quem sabe, mais mentiras inteiras.
Mas aí, já não mentiam um para o outro.
Mentiam para si mesmos.
E seguiram, cada qual seu rumo, contando a si mesmos mentiras sobre o que passou.
Ou, quem sabe, sobre o que nunca houve.
Fim.