quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Antes que o galo cante...


Há algum tempo ocupo um cargo de chefia em uma instituição que é eminentemente masculina. Não tenho aqui dados de quando as mulheres começaram a ocupar tal cargo, mas hoje, integrando, calculo que por alto, sejamos cerca de 30% do efetivo.

Quando criança, criada com a avó, muitas vezes preferi ficar em casa, lendo, e fazendo companhia para minha avó, que era uma pessoa incrível, mas, hoje vejo, tinha algumas manias, entre elas, não gostar de festa, de sair de casa, receber visitas.

Ficava lendo, lendo, e lendo. Li toda obra de Monteiro Lobato, li quase toda a coleção Vagalume.

Minha mãe era professora, mas trabalhava na secretaria da escola, então, depois da aula, ficávamos eu e minha irmã esperando-a para irmos embora, e eu me enfiava na biblioteca (D. Conceição, a bibliotecária da E. M. Virgílio de Melo Franco, as vezes até me deixava ficar lá sozinha, no intervalo entre os turnos!). Lia de tudo. Tudo mesmo, sem critério, coisas que hoje eu não entendo, e nem me animo a ler, eu pegava e lia, com dez, onze anos.

E com uns doze ou treze anos, comecei a bisbilhotar as estantes da minha tia, que é pedagoga, e ler obras mais adultas. Érico Veríssimo, Machado de Assis, Jorge Amado, entre outros. E Best Sellers: Sidney Sheldon, Harold Robbins, Judith Krantz.

Com treze anos, li a obra completa denominada “Angélica, a Marquesa dos Anjos”, de Anne e Serge Golon (tenho até hoje, 26 volumes, ciumentamente guardados, já que custei para completar a coleção, comprando volume por volume na banca de revistas!)

Sempre me fascinaram as heroínas. Achava a Emília o máximo, sua postura questionadora, a qual todos tentavam conter chamando de "torneirinha de asneiras"!

Quando estava com 14 anos, minha avó faleceu. Mudei de vez para a casa de meus pais, que era apenas duas casas acima, e fui conviver diariamente com meus irmãos (duas irmãs e um irmão, ambos mais jovens).



Santa Catarina de Alexandria - uma mulher que foi morta pelos seus ideais, é a primeira "Doutora" da Igreja Católica, ao lado de escritores como Agostinho e Tomás de Aquino)


Tive uma formação religiosa católica. Eu ficava em casa, com minha avó, lendo, enquanto ela fazia suas orações, rezava o terço, assistia à missa na tv.

Depois da morte dela, me afastei da Igreja. Comecei o curso de preparatório para a Crisma, mas não concluí. Era muita doutrinação com a qual eu divergia.

Como me descobri feminista?

Quando comecei a questionar porque eu, mais velha, tinha horários para chegar, enquanto meu irmão caçula podia sair sozinho?

Quando ficava revoltada por ter que me reprimir e ouvir calada as “cantadas” de baixo calão que era obrigada a ouvir na rua, porque estava de short curto? E ai de mim se retrucasse! O nível baixava e uma vez um sujeito quase partiu para a agressão física.

Quando me revoltei por ver que na eleição para o grêmio estudantil, (que eu, na empolgação pelo impeachment do Collor, ajudei a recriar) eu somente valia como bastidores, porque era muito “agressiva” e "autoritária" para uma menina? (porque eu queria um posicionamento politizado, e não só festas e esportes.)


Eu posso e sei fazer. Mas posso fazer outras coisas.

Não sei. Acho que não foi aí não. Eu instintivamente questionava, até pelas leituras que fazia, mais do que a maioria dos meus colegas e amigos de adolescência, mas não me via como feminista.

E até poucos dias, continuava negando que fosse. Influenciada pela imagem de que feministas são “mal amadas”, são feias, não são mulheres? Não sei.

Quando me assumi feminista? Quando neguei que fosse.

O cargo que ocupo é na polícia. Polícia Civil. Delegado.


Emília, a boneca falante. Intencionalmente ou não, Monteiro Lobato criou um exemplo de feminismo

Nesses quatro anos, me considero uma pessoa de sorte. Nunca fui assediada. Nunca fui desrespeitada abertamente por ser mulher. Já me desafiaram por ser nova de serviço, por ser inexperiente, e principamente, por ser “dos direitos humanos”.

Mas subrepticiamente, sim, já vivi situações nas quais percebo o sexismo da sociedade e da instituição.

1 – O (à época) Agente de Polícia (antigo detetive, atual investigador) vira para mim, do nada, e, olhando minha assinatura e meu carimbo, diz:

"- Dra., a senhora sabia que não existe Delegada?”

Eu: hein??!

Ele: É, não existe a palavra delegada, só delegado!"

Me senti em uma obra do Kafka. Como assim? Eu existo, logo, Delegada existe, ou não?!?

Acreditem, mandei um e-mail para a ABL, para saber, porque realmente, nos dicionários, não existe a palavra, como opção feminina para DelegadO. Me responderam dizendo que, como a palavra se refere a um cargo tradicionamente ocupado por homens, não havia a previsão do feminino, mas que quando coubesse a transformação, não seria errado mudar a concordância e dizer “a delegadA”. Já o cabo não dá, né, ficaria a caba... feinho...

Não sei se devo ressalvar que não faço questão de dizer “herstory”, ou outras do gênero. Mas, no caso, a intenção foi cutucar.

2 – Tempos depois, já com outra intenção, um Agente de Polícia me fala:

“Doutora, com todo respeito, a senhora tem corpo de mulher mas tem cabeça de homem”!

Notem que ele queria elogiar... logo...

Não fiquei ofendida, mas me faz pensar.

3 – Um superior, bacanérrimo, as vezes, nos momento de descontração, brinca que “polícia não tem sexo”. Para não ofender as suscetibilidades ou o pudor das mais incautas (ou dos homens que se sentem desconfortáveis pelo fato de uma mulher não se incomodar com um pouco de besteira, sei lá)

Também faz pensar, não é?

Claro que tem sexo. É masculino, como são os padrões da sociedade, em geral, ora.

E por último:

Caso “Eliza Samudio” .

Li um post de um blog, da Maiara Melo, e comentei com alguns amigos, pelo e-mail. E uma amiga, pessoa incrível, que respeito muito, me respondeu assim:

“Desejo apenas fazer um questionamento: até onde nós, mulheres, queremos ser > tratadas como mulheres? Penso que o feminismo, às vezes, encaixa-se para algumas apenas quando lhes é conveniente.

O fato de que a sociedade "não chama de aproveitador o homem que submete uma mulher a transar sem camisinha" e tantas outras “verdades" ditas no texto a mim soam como mais uma oportunidade de se fazer aparecer frente à tamanha publicidade. Ora, apenas como exemplo, nos tempos atuais em que a televisão, jornais, revistas, escolas, governo, tudo e todos fazem apologia ao uso da camisinha, com todos os seus prós e informações sobre os contras,uma mulher dizer que foi obrigada a fazer sexo sem proteção, para mim, é conformismo.”

Eu me justifiquei para a amiga, dizendo:

“Não me vejo como feminista, apesar um dos meus superiores haver assim me chamado, algumas vezes.
Sou humanista, gosto de pensar.
Tento defender os grupos vulneráveis, sejam eles de negros, homossexuais, crianças, idosos ou mulheres.
No entanto, sou mulher.
Concordo com você, muitas mulheres que são agredidas se submetem.
Também já passei por situações nas quais dei tudo de mim, enquanto
profissional, consegui a prisão preventiva, cumpri. E dois dias
depois, veio a própria vítima, trazer o alvará. Que ela foi ao juiz
para pedir! Vontade de "quebrar" ela toda, eu tive, claro. Pensar que
"é mulher de malandro mesmo". Pensei.
Só que eu não consigo me colocar nos lugar dela, e nem ela no meu.
O que para mim é absurdo, pode ser, sim, algo natural para pessoas com experiências de vida diferentes da minha, que tive a sorte de nascer em uma família que me proporcionou meios para estudar, ler, ler muito, formar minhas opiniões, ousar pensar diferente.
Eu não busco privilégios exclusivos para um gênero. Licença
maternidade e paternidade deveriam ser iguais, pais e mães. Desde que ambos tivessem responsabilidades iguais, e não só que o pai
"ajudasse". Tenho uma colega que mora na Espanha, outra na Itália, outra no Canadá. Sociedades diferentes entre si, e diferentes da nossa.

Na Suécia, pelo que ouvi falar a licença paternidade é igual a licença maternidade. E homens e mulheres dividem a conta, sem drama. (Abro mais um parêntese: ações afirmativas, como cotas, tem um papel importante, sim, de inclusão social. Estamos errando, estamos mostrando o lado ruim da história, já que no Brasil nunca tivemos segregação "racial" em lei, como nos EUA e na África do Sul, mas temos que tentar.)
Sim, são pequenos atos, mas que tem uma significação mais profunda.
Ser "vítima" é uma posição de certo "poder", a psicologia explica, e a
criminologia também já possui uma área extensa, que é para alguns já
uma ciência autônoma, tratando da vítima.
No caso específico, Bruno X Eliza", temos papéis sim, que
inconscientemente são interpretados no cotidiano. E me frusta um pouco que a imprensa não possa ajudar a criar um debate sobre o tema, aprofundando a reflexão sobre o que se espera de homens e mulheres, seres humanos adultos, capazes, possuidores de livre arbitrio (até que ponto é realmente livre, não saberia dizer, mas aí, já estaria entrando em uma "vibe" meio Matrix... não vem ao caso).
O movimento feminista obteve inúmeras conquistas que para nós,
mulheres do século XXI, são naturais, mas que durante metade do século passado, para nossas mães e avós, eram privilégios.
Cursar faculdade, escolher a carreira (ser delegada?! ora, isso é uma
coisa tão "macho", há quanto tempo temos essa opção? E hoje, somos quase 30%, eu acredito), trabalhar fora (lembra do Estatuto da Mulher Casada?), comprar e vender sem "autorização" do marido (os próprios bens, e não os da sociedade conjugal)...
Votar! Essa obrigação chata, que este ano teremos que cumprir! Ter uma mulher como candidata a presidente da nação! Poxa, não é a mulher que eu gostaria, ainda mais com o vice que foi escolhido, mas há 78 anos, nem votar as mulheres podiam.
Então, creio que sim, existem mais questões sob o caso Bruno-Eliza do que as que são abordadas pela mídia. E a mídia, em uma sociedade democrática, tem o dever, a obrigação, de fomentar o debate, e não de simplesmente consolidar opiniões já existentes.

Sou católica por formação, católica caótica, já que questiono o patriarcado que é a base da igreja, defendo o direito de escolha no aborto, divórcio e o casamento igualitário. Me lembrei de Pedro, que antes de aceitar Jesus Cristo, negou por três vezes que sequer conhecesse o Messias...

Estou misturando feminismo com religião, isso não vai dar boa coisa, mas foi o sentimento!

(Então Pedro se lembrou da palavra que Jesus dissera:Antes que o galo cante tu me negarás três vezes.” E, saindo dali, chorou amargamente. Mateus 26:75)

Capa do DVD "Orgulho e preconceito", baseado na obra de Jane Austen, produzido pela BBC. Jane foi uma mulher à frente de seu tempo, e pagou o preço, como mulher e como artista.

Hoje, me assumi feminista, humanista, de esquerda. Graças à Cynthia (minha orientadora na monografia da pós na Dom Helder Câmara), cheguei até a Lola, ao Luluzinha Camp, e a tantas blogueiras e blogueiros como o Tiago, do Memória Individual, e a Erica, a Inquietudine.

E sendo tudo isso, nada disso nos define por completo, não é mesmo? Seremos sempre seres em transformação.


* Este texto foi escrito para o concurso de blogueiras do blog Escreva Lola Escreva, e fala sobre como me assumi feminista)

Atualizando: para votar, vá até o http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2010/08/concurso-de-blogueiras-no-ar.html

7 comentários:

  1. Que texto bacana, Renata!
    Estou lendo cada um dos textos da 1ª etapa do concurso de blogueiras que a Loláxima organizou!
    Parabéns 3x!

    Beijukkiss

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  2. nossa, que texto bom, viu? fiquei surpresa em varios pontos dele. eh engracado que eu tenho lido os posts do concurso e percebido que a maioria começa dizendo que lia muito quando era pequena. sera que isso teve algo a ver com o feminismo de anos mais tarde? porque ate agora, nao conheci nenhuma feminista que nao fosse inteligente.

    quanto ao "Doutora, com todo respeito, a senhora tem corpo de mulher mas tem cabeça de homem”!" eu lembrei de alguns testemunhos de mulheres torturadas durante a ditadura. diziam que, quando aguentavam algum castigo mais duro, os torturadores diziam que elas pareciam homens. eh foda, nem quando somos boas podemos ser mulheres.

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  3. O texto é muito bom! Meus olhos brilharam!! Quando crescer quero ser como você (eu já estudo Direito e já gosto da Mafalda... acho que to indo bem!)

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  4. Cheguei até aqui pelo blog da Lola. Gostei do texto.

    Interessante a história de Santa Catarina de Alexandria (pesquisei depois da referência :-). Mulheres como ela e Hipátia, também de Alexandria, poderiam ter feito muito mais pela humanidade se não tivessem sido mortas.

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  5. Gente, que legal!
    Vou ter que fazer um post sobre os coments do meu post!
    E nos das blogueiras que estão participando tb, adorei o do Groselha News (da primeira etapa) e o da Maira, Antigarota Anglo.

    A iniciativa é ótima!
    Bjs a todos, prometo visitá-los nos próximos dias!

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