terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ladrão de galinha, ladra de esmalte, "a PM prende e a Civil solta!"


Polícia, em Direito, é um termo muito comum, especialmente no Direito Administrativo, o ramo que, segundo a Odete Medauar (doutrinadora da área específica), é o conjunto de normas e princípios que regem a atuação da Administração Pública. Poder de polícia é “a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público", segundo Maria Silvia Zanella Di Pietreo, outra autora conceituada.
O poder de polícia é um dos poderes da Administração Pública, e não se confunde com as instituições policiais. Outros órgãos, como a ANVISA, ANATEL, entre outras, exercem poder de polícia. Vigiláncia sanitária, fiscalização de posturas, etc, etc.

A Administração Pública é composta por todos os órgãos e instituições públicas do Poder Executivo (federal, estadual, distrital e municipal), Poder Legislativo (também nas três esferas) e Poder Judiciário (este só federal, distrital e estadual, municipio não tem Poder Judiciário autônomo, tem só os juízos ou varas estaduais ou federais).
As polícias são instituições que integram a Administração Pública, na esfera do Poder Executivo, e somente existem subordinadas à União (Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal) e aos Estados-membros (Polícias Civis e Polícias Militares). As Guardas Municipais, onde existem, são policia no sentido lato da Administração Pública, ou seja, tem poder de polícia quanto à proteção dos bens, serviços e instalações municipais, nos termos do art. 144, §8º, da CF.
Nos Estados e no DF, existem duas instituições policiais: uma, judiciária, investigativa, que são as Polícias Civis, e outra, de caráter ostensivo, com atribuição preventiva, que são as Polícias Militares.
Não vou me deter sobre a PF e a PRF, pois a mazela que quero discutir aqui é relativa a alguns delitos que geralmente não caem nas redes dessas duas (a primeira, porque seria a "elite" da segurança pública nacional, e a segunda, bem, não sei bem o que ela faz, pra te falar a verdade... )
Da forma como hoje funciona o Sistema de Justiça Criminal, ocorrendo um crime, ele deve ser levado ao conhecimento do Delegado de Polícia, o qual, após presidir a investigação para apurar, 1º) se houve crime (ou contravenção penal) e 2º), quem é o autor (Isso é a chamada "autoria e materialidade do delito"), irá elaborar um relatório, e ao final, concluindo que há indícios suficientes de autoria e materialidade, proceder a um ato administrativo, chamado "indiciamento", que nada mais é do que mandar incluir no Sistema de Informações Policiais (SIP) aquele fato, que está sendo imputado àquela pessoa (aí o cidadão fica com a chamada "ficha suja". Se não for condenado, ou se nem for oferecida denúncia, ele deve procurar o Instituto de Identificação, com a certidão da Justiça, e pedir para excluir aquele indiciamento).
Então, o procedimento administrativo pré-processual chamado Inquérito Policial, é encaminhado para o Juiz, que o encaminha para o Promotor, e este último faz outra análise, e aí, ele:
1) entende que houve o crime, que a autoria está demonstrada, e que o IP está pronto (raras vezes....) e então, oferece a "denúncia", que nada mais é do que um relato dos fatos, que ocorreram e ao final, capitulação jurídica daquele fato (121, 157, 171, 213, só para ficar nos mais conhecidos). Esta peça é encaminhada ao Juiz, que pode aceitá-la ou não.
2) entende que não está boa a investigação e que o IP tem que voltar para a Polícia fazer o serviço mais bem feito (essa é sempre a justificativa, ainda que muitas vezes a motivação não seja bem essa, mas... cala-te boca!)
3) entende que não houve crime, mesmo que os fatos fossem aqueles narrados, e propõe o arquivamento do IP, mandando esse parecer ao Juiz. Se o juiz concordar, manda arquivar, e daí, só pode ser desarquivado se surgirem fatos novos. Se o juiz discordar, ele manda para o chefe dos promotores (Procurador Geral de Justiça, no caso da Justiça Estadual, ou Procurador Geral da República, no caso da Justiça Federal - já houve um PGR com um apelido interessante... ) e esse cara manda outro oferecer a denúncia, ou então, insiste no arquivamento, e o juiz está obrigado a arquivar - esse poder dos promotores de Justiça decorre do fato de o Ministério Público ser o titular da ação penal, o que significa que só ele pode processar ou não alguém, nos casos de crimes de ação penal pública (incondicionada ou condicionada).

Esse é o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal, do qual as instituições policiais são as "portas de entrada".

Como instituições da Administração Pública, na esfera do Poder Executivo, além dos princípios relativos ao processo (devido processo legal, contraditório, ampla defesa, respeito aos direitos e garantias individuais, etc), devemos atentar ainda para os princípios da Administração Publica, explicitados no artigo 37 da CF/88, mas não só lá.
Alguns desses princípios explícitos são:

- Legalidade
- Impessoalidade
- Moralidade
- Publicidade
- Eficiência

Entre os implícitos, estão:
- Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado
- Princípio da Finalidade
- Princípio da Razoabilidade e Proporcionalidade










Então tá.Qual é o ponto onde quero chegar?
Muitas vezes vemos grandes comoções sociais (manipuladas pela mídia, ou nem tanto), sobre fatos como este:




Homem é preso acusado de roubar galinhas no bairro Taquari

dsc09995No início da madrugada deste sábado, (29), o jovem Francisco Adriano Ferreira, 20 anos, morador do bairro Taquari foi preso. O rapaz teria invadido o quintal de um morador da Rua Baquari, bairro Taquari onde foi ao galinheiro e furtou três galinhas, o proprietário da casa e dono das aves que estava dormindo não percebeu o furto.
No exato momento em que o jovem pulava a cerca, uma guarnição da Polícia Militar que realizava patrulhamento rotineiro passava no local e surpreendeu o acusado que carregava as galinhas.
Preso em flagrante o rapaz não soltou as galinhas e nem reagiu à prisão, somente pediu aos policiais que não o algemasse que ele não pretendia fugir e explicaria tudo quando chegasse à delegacia.
Encaminhado a Delegacia de Flagrantes – DEFLA, o acusado em nenhum momento soltou as galinhas mantendo-se abraçado com os animais e em alguns momentos acariciando as mesmas. O acusado confirmou a policia que é usuário de craque, ou seja, dependente químico. Após ser ouvido pelo delegado, Adriano foi liberado, sendo que irá pagar uma pena alternativa pelo crime.
segunda-feira, 12 de julho de 2010


Homem é preso em São Mamede por furto de galinha

No dia 09 de Julho por volta das 11:30 horas foi preso no sitio Baraunas deste municipio por furto de galinha, o acusado Jósé Carlos Caetano dos Santos,25 anos residente no bairro das Placas em Patos, segundo informações da vitima o acusado adentrou a sua residencia e furtou uma bacia contendo varios ovos, a guarnição foi solicitada no local e encontrou o acusado portando alem dos ovos varias galinhas em um galinheiro, feito a prisão do infrator e a apreenção do material ambos foram apresentados na delegacia local onde foi autuado em flagrante e conduzido a cadeia pública de Santa Luzia-pb, ficando a disposição da justiça.
E ainda este:
02/11/2001 - 08h00

Homem fica 16 dias preso por furtar comida em São Paulo

do Agora São PauloApós ter passado 16 dias preso em São Paulo por ter furtado um pedaço de frango, o auxiliar de almoxarifado Augusto Satiro de Jesus, 45, foi solto ontem por ordem do juiz Júlio Caio Farto Salles, do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo). Jesus trabalhava no Restaurante do Aeroporto, rede de alimentação que atende restaurantes e operadoras aéreas, e foi preso no dia 16 de outubro acusado de tentativa de furto de comida.
Um pedaço de coxa e sobrecoxa de frango foi achado em sua mochila pelos seguranças que fazem revista diária nos funcionários.
"Fazia um ano e seis meses que trabalhava na empresa. Peguei os pedaços de frango porque estava sozinho em casa e sem um centavo para comprar comida."
Jesus disse que sabia que seria revistado, mas não imaginava que pudesse ser preso por pegar um alimento com a validade vencida.
Seu alvará de soltura foi concedido na tarde de ontem, um dia após a imprensa ter divulgado a história de Jesus com parecer de criminalistas repudiando sua prisão. Um deles, que se ofereceu para defendê-lo gratuitamente ao ser entrevistado, agilizou sua libertação perante à Justiça.
A prisão de Jesus, que não tinha antecedentes criminais, arrastou-se por vários dias porque ele não tinha um advogado.
Segundo o advogado Antônio Mariz de Oliveira, criminalista há 36 anos, o furto famélico (por necessidade, para comer) não é crime e, por isso, ninguém pode ser penalizado por cometê-lo. A legalidade do ato é previsto no artigo 24 do Código Penal Brasileiro.
O próprio delegado Guerdson Ferreira, titular da delegacia do Aeroporto de Congonhas, onde foi feito o flagrante, disse que não entende o motivo que deixou Jesus tanto tempo atrás das grades.
"Eu só não podia deixar de prendê-lo pelo crime, pois ele foi pego em flagrante. Só cabe ao juiz analisar e julgar o caso como furto famélico", disse.
O pedaço de frango, avaliado em R$ 0,90 pela polícia, custou caro a Jesus. Além de ter ficado 16 dias preso com outros 25 homens em uma cela de 12 m2, ele foi demitido por justa causa -medida que não prevê nenhum tipo de indenização ou pagamento.
O mesmo advogado que o ajudou a sair da cadeia deverá entrar com uma ação judicial para anular a demissão por justa causa.
Jesus contou que, nos 16 dias que ficou preso no 26º DP (Sacomã), passou a pão e leite. "Fui muito bem tratado pelos presos. Eles ficaram indignados com minha prisão", disse. O juiz corregedor do Dipo, Maurício Lemos Porto Alves, não atendeu a reportagem para se manifestar sobre o caso.

O tema é tão batido que já existe até uma suposta sentença em versos, sobre um fato como os acima, ocorrido em Carmo da Cachoeira, em MG.

Quando essas pessoas ficam presas dias ou até meses, sem assistência de um defensor (obrigação do Estado, sim senhor!), e ao final, são absolvidas, com base no princípio da insignificância, muitas vezes sobra para o Delegado que ratificou a prisão.E eu fico na sinuca: posso ou não posso deixar de ratificar a prisão? Se eu mandar soltar, não estarei sujeita a ser acusada de algum crime?E então, reflito e decido: posso e DEVO liberar, sem ratificar a prisão. Não, não estarei sujeita a ser condenada por nenhum crime. (de acordo com esse senhor aqui, eu estou incentivando o crime... mas, fazer o que?? Ele ainda cita o grande Hungria, fabuloso, claro, mas do século para lá de passado!)

"É possível, assim, concluir que a norma penal em um Estado Democrático de Direito não é somente a que formalmente descreve um fato como infração penal, pouco importando se ele ofende ou não o sentimento social de justiça; ao contário, sob pena de colidir com a Constituição Federal, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente selecionar, dentre todos os comportamentos humanos, apenas aqueles que realmente possuam lesividade social. Qualquer construção típica, cujo conteúdo contrariar e afrontar a dignidade humana, será materialmente inconstitucional, posto que atentatória ao próprio fundamento da existência de nosso Estado. "(Fernando Capez)

Creio que estou cumprindo o meu dever. Estou efetivando os princípios, não só os do sistema de justiça criminal, princípios estes que se referem ao Direito Penal, Processual Penal e Constitucional, mas também aos princípios da Administração Pública, como um todo.

Economia, celeridade, eficiência.


De minimis non curat praetor (um latinzinho, só para ficar mais "classuda"...

Todos esses, conceitos que aprendi na faculdade, que estudei nos preparatórios, que li em vários livros, anotei em inúmeros cadernos, gravei a ferro e fogo na mente. Tudo na teoria.

Na prática, é bem mais difícil aplicar.

Veja o caso abaixo:

junho 2, 2010

Uma mulher condenada por tentativa de furto de três esmaltes teve a ação penal extinta pelo Superior Tribunal de Justiça. A 5ª Turma classificou o caso como “crime de bagatela” porque os esmaltes foram avaliados em R$ 5,89. Para o STJ, a tentativa de furto não lesiona o patrimônio da vítima e não causaria qualquer consequência danosa.
O relator do caso, ministro Arnaldo Esteves Lima, afirmou que, embora o ato seja considerado furto, é desproporcional a imposição da pena. “A conduta não possui relevância jurídica”, afirmou. O ministro também salientou que a lesão ao patrimônio da vítima foi inexpressiva, não se justificando a intervenção do direito penal.
A Defensoria Pública de Minas Gerais recorreu ao STJ depois que o Tribunal de Justiça manteve a condenação a seis meses de reclusão por tentativa de furto. De acordo com o TJ mineiro, as condições pessoais da condenada impediriam a aplicação do princípio da insignificância.
O custo médio de processo julgado no STJ, em 2009, foi de R$ 2.674,24. O valor é alto se comparado com os ínfimos R$ 5,89 dos esmaltes. Outras situações semelhantes chegam ao tribunal superior. No início de fevereiro, a 5ª Turma concedeu Habeas Corpus a um homem que furtou um caderno em uma papelaria. O STJ já julgou também furto de um boné, de um pote de manteiga, de um cabrito, de uma bicicleta, de galinhas e de frangos congelados. Todos considerados crimes de bagatela. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Ora, ora, ora.
Semana passada, no plantão, a PM levou conduzido (preso em flagrante) um rapaz, o qual furtou R$4,00 (quatro reais) de dentro da carteira de seu colega de trabalho. E ficou lá, o comandante da guarnição, aguardando a lavratura do APF. Eu olhei o BO, olhei a cara do sujeito. Olhei o cidadão, perguntei se foi ele mesmo, ele confessou. Falei para o PM: tá dispensado, podem ir.E ouvi o conduzido, mandando liberar em seguida.
Vai ser instaurado IP. (aliás, eu mesma instaurei, para não haver dúvidas de que o procedimento será adotado)
Só que, imaginem se eu autuo em flagrante e mando para a CADEIA um sujeito, por causa de R$4,00 (quatro reais!!!). Não vou nem me alongar explicando que além do valor mínimo e da ausência de violência, havia ainda a ser considerado que se tratava de um crime impossível, uma vez que foi um flagrante preparado... !

Pois então: não confirmei a prisão, instaurei Inquérito e ouvi todo mundo. Pode ser que mesmo depois do meu despacho, o promotor ofereça denúncia? Claro que sim. Ele pode inclusive duvidar da minha motivação, e achar que eu "levei um".
Por isso que fundamento tudo.

Como se justifica PRENDER provisoriamente uma pessoa que vai, se for condenada, cumprir pena não privativa de liberdade? Como se justifica antecipar uma punição que o Estado não estará autorizado a impor ao final de um processo?

Como justificar o gasto de milhares de reais e a privação da liberdade de uma pessoa por duas notas de dois reais?

Mas sempre haverão aqueles que dirão: "Tá vendoooooo!!! É por isso que esse país tá assiiimmmmm! Indo pro buracoooooooo! Olha que absurrrrdoooooo!!"

A regra é a liberdade. Para você, para o seu vizinho e para o garoto da favela! A mesma regra. Não posso pegar mais leve ou mais pesado em função da pessoa! Me cabe analisar o FATO (claro, nem sempre consigo, confesso. Não sou isenta. Tento ser imparcial, mas não posso me presumir isenta. Minhas ideologias influenciam minhas posições, como as de qualquer outro operador do direito.)

Tem pessoas que não gostam disso.
Acham que CADEIA é solução para tudo.

Alguns (poucos) PM's ficam p... da vida comigo. Acham que se eles prenderam, eu tenho que mandar recolher. Tráfico de drogas!!! Furto!!! Documento falso!!! (tráfico eu prendo mesmo, mas tem que ter um elementozinho, né? Duas pedras, cinco reais e NENHUMA TESTEMUNHA?!)

E para aqueles que acham que CADEIA É SOLUÇÃO, que "esse povo do direitos humanos fica protegendo bandido", e que furtar um esmalte é a mesma coisa que furtar um milhão de reais (não um milhão, de milho grande, como esse caso aqui), e que "direitos humanos é pro cidadão honesto, cadeia para o resto", eu digo que amanhã, o senhor e a senhora, de bens (ops, de bem!) pode se juntar ao resto. E pimenta nos olhos DOS OUTROS é refresco.

Li em um blog americano uma frase que me marcou: "aquele que abre mão dos direitos individuais em nome da segurança pública não merece nenhum dos dois".

Creio que isso vale para o Estado e para o cidadão.

Estamos abrindo mão dos direitos humanos em prol de uma (falsa) sensação de segurança?


Eu sei que EU não! E você?


Um comentário:

  1. ótimo texto Renata!!!

    Vocês tem muitos casos do ofendido oferecer "queixa subsidiária" quando o MP fica inerte ao oferecimento da denúncia - nos casos de ação penal pública? Delegado intervém em algo nessa queixa?? nunca vi isso na prática...

    Bjosssssss

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