domingo, 30 de dezembro de 2012

Incômodo

Tem dias que eu queria ser a maioria.
Simplesmente nem tentar sair do meu lugar, me deixar levar pela onda conservadora e moralista e hipócrita, sentar no meu sofá, atrás do meu monitor de LCD ou com o smartphone na mão e usar na vida o filtro invisível das redes sociais. Bloquear. Ativar o filtro e nunca mais ler a pessoa.
Mas não dá mais.
Não sei, pode ser uma mutação, mas sempre me senti desconfortável com muita coisa, para as quais eu não tinha nome.
Hoje tem.
Racismo, homofobia, sexismo, machismo, preconceito de classe, cissexismo.
Eu sou um produto do meu meio, assim como quase todo mundo.
Eu me revolto contra esse meio, as vezes de forma desastrada, ineficaz.
Desde que fui aprovada em um concurso público, para a carreira policial, todas as mazelas do mundo vieram dar no meu colo, na minha mesa, me esbofeteando e me mostrando como eu cresci protegida.
Me mostrando que ler Jorge Amado e Graciliano Ramos e saber da miséria da seca no sertão do nordeste na década de 30 e as mazelas da São Paulo urbana na mesma época, não me preparou em nada para lidar com a miséria, a pobreza, a fome e a violência em uma cidade como Contagem.

Em um dos encontros que tive com a turma da faculdade, Direito, anos depois de formada, já trabalhando como Delegada, um colega me disse que eu paguei a língua.
Que eu, defensora de Direitos Humanos desde a faculdade (engraçado, meus colegas se lembram de mim já como defensora dos "oprimidos". Eu não consigo me lembrar. Faculdade agora é uma época tão longíqua, tão protegida, tão livre de responsabilidades da vida adulta.) fosse trabalhar na polícia, a maior violadora de Direitos Humanos.
E eu respondi que era exatamente ali que eu deveria estar, então, para poder mudar alguma coisa por dentro, de dentro. Que era o melhor lugar para alguém como eu.

E ainda penso assim.
Mesmo não conseguindo fazer tudo o que quero.
Mesmo tendo que lidar com uma cultura que é respaldada e incentivada pela sociedade, de porrada e jeitinhos e pé na porta, e gritos e indiferença com os "alvos" da Segurança Pública.
Mas não são todos que estão imersos e absortos nessa cultura. Não são.
É a maioria? Talvez. Mas não todos e todas.

Por isso eu continuo, e eu tento fazer algo de bom.
E nessa carreira, eu conheci o ódio.
E eu conheci o ódio.
O ódio ao outro.
E o ódio a mim.

Ser policial não é fácil quando você questiona os padrões, os papéis há muito estipulados e divididos.
Ser odiada por ser policial, apenas, e por ser (tentar, ao menos?) sair do lugar comum também não é nada fácil.

Acho que ser alvo de ódio, algo que não era presente na minha vida, pelo contrário, me fez sentir empatia por quem é odiado.

E tem tanto ódio por aí. Por aqui.
Tanto rancor, tanto temor do diferente, que se transforma em ódio e se revela  nas palavras duras, cruéis, ou nas palavras sutis e lapidadas com o conhecimento acadêmico, ou supostamente acadêmico, sei lá.

Que sei eu?
Sei que quando uso uma palavra ou uma expressão que ofende ou incomoda alguém, quando alguém de algum grupo que já é tantas vezes odiado, invisibilizado, oprimido, eu tento parar de usar. Eu tento refletir, sentir se é necessário ou não, mas principalmente, eu paro de usar. Porque pode ofender, magoar ou entristecer alguém que já vive com tanta dor.

E me perturbou uma discussão relativamente recente, que me fez perceber que eu espero demais das pessoas. E talvez também as pessoas esperem demais de mim. Talvez eu espere demais de mim, também.

A verdade é que comecei esse post com mágoa, com raiva, com amargor.
Mas estou tentando não cultivar isso.
Sei que o ódio é necessário.
Sei que muita gente precisa dele para viver.
Eu não.
Eu não quero mais o ódio.
Ele já está muito presente na minha vida, no meu dia a dia.
E eu não sou santa, nem sou  madre Teresa.
Eu sou autoritária, muitas vezes fútil.
Consumista, compulsiva, falo demais.
Bebo, falo besteira, faço besteiras.
Tenho defeitos, mais defeitos do que consigo lembrar agora.
E tenho qualidades.
E uma delas é que sou generosa.
Sou boa.
Nem sempre consigo acertar e talvez boas intenções encham o inferno, eu sei.
Mas não vou me desculpar por isso.

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Esse post foi iniciado há muitos meses, não lembro a data, e estou trabalhando para não gastar energia guardando mágoa, apesar do meu signo do caranguejo ser bem rancoroso.

E hoje, quando vim aqui, escrever quem sabe uma retrospectiva de 2012, fazer projetos para 2013, e adiante, vi o rascunho, li, e decidi publicar.
Porque apesar do tempo, ele continua atual.
Preciso trabalhar nisso!




4 comentários:

  1. Sei dos teus conflitos e da dor que te causam, e sei também que a Renata que conheço vai superar tudo isso. Não impunemente, não impunemente...
    Mas, vai. E vai continuar generosa e sem rancores, sempre mais amor, porque é da tua natureza. Esse mundo é ruim, ô se é, mas tua natureza é mais forte. Eu sei.
    <3

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  2. Tks, Ni.
    Obrigada por surgir e ficar na minha vida.
    Agradeço todo dia por você e tantos e tantas outras que me ajudam nesses dilemas.
    Te amo, sua ogra.

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  3. Que reflexão bonita, Renata. Espero que em 2013 você tenha então sobretudo amor. E muita energia pra prosseguir na sua luta. E obrigada pela sua delicadeza comigo em 2012. Felicidade.

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  4. Navegando pela internet, achei esse blog. Li esse texto e me interessei muito. Por mais que não seja uma policial, me identifiquei muito com o seu desabafo de incômodo pela falta de respeito e por esse mundo rodeado de tabus e regras que a sociedade condiciona sobre todos. Parabéns pelo texto e muita luz pra você!

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