quinta-feira, 5 de julho de 2012

Pequena tragédia, em um ato

Uma cena em tempo real, com quatro personagens:

A - homem, branco, 22-28 anos, vestindo jeans, tênis, camisa;
B - mulher, branca, 40-45 anos, vestindo legging preta, chinelos e camisa;
C - mulher, branca, 30-35 anos, vestindo vestido preto e branco, scarpins, óculos escuros;
D - homem, branco, 40-50 anos, vesindo bermuda, chinelo, camisa polo, boné;


Todos aparentemente cissexuais, aparentemente heterossexuais e aparentemente classe média.

O cenário:
mercado central de uma cidade metropolitana, 12:00. Um dia qualquer.

(Personagem C chega no mercado, e vai até o local onde ficam os caixas eletrônicos, onde já se encontram A e B, além de um senhor com uma criança, que já estão usando um dos caixas, do banco X, e outra pessoa, no banco Y. Personagem C vê que existem pessoas na sua frente, mas não sabe qual fila deve esperar, já que não há divisórias e o personagem A está no meio do corredor, enquanto a personagem B está do lado do caixa, perpendicular à parede do corredor.)

Personagem C: Por favor, qual é a fila para o Banco X?
Personagem B: aqui, atrás de mim.

(Personagem C vai para trás da Personagem B. Personagem A olha para as duas, aparentemente percebendo que Personagem B já estava no local antes que ele chegasse, se aproxima. Personagem C cede o lugar, e ficam os três, parados.)

Personagem B: Vocês sabem se tem caixa eletrônico do banco Z aqui?

Personagem A: Não sei, não.

Personagem C: Acho que tem, mas não sei onde fica.

Personagem B: Ah, brigada. Acho que vou usar o X, mesmo. Aproveitar enquanto não tiram, né?

Personagem C: Verdade. Com essas explosões, não é mesmo? O da fármácia, perto da minha casa, já foi retirado. Todos estão com medo, o prejuízo é grande, né?

Personagem A: Vocês sabiam que vai ter uma lei para proibir caixas eletrônicos???

Personagens B e C dizem em uníssono: COMO ASSIM?

Personagem A: Pois é, já que não tem jeito de colocar um policia em cada caixa, né, que é o que eles deviam fazer. A gente paga impostos!!!

Personagem B: Mas, rapaz, eu até queria, as vezes, mas ninguém tem como ter um policial 24 à sua disposição! Não é?

Personagem C sorri amarelo: E também, não ia adiantar, porque as quadrilhas que explodem os caixas eletrônicos são bem armadas, e renderiam facilmente um policial, você não concorda?

Personagem B: Ainda tem isso, verdade, ninguém vai morrer por causa disso. Se bem que eu já fui roubada - diz com expressão orgulhosa - e não deixei barato, dei um pega no ladrão, e ele não levou o que queria!

Personagem A: E também acho que policia não ia adiantar, porque policia é tudo corrupto!!!

Personagem C, novamente, sorri amarelo, mas com o rosto já corado. Personagem A não percebe nada, e continua falando.

Personagem A: Porque nesse país, nada vai pra frente. DEVIAM MATAR TODOS OS POLÍTICOS, PEGAR ESSES CARAS QUE ESTÃO EXPLODINDO OS CAIXAS E EXPLODIR BRASÍLIA!!!!

Personagem B: Meu filho, vocé é muito revoltado, né? (diz, olhando para Personagem C, que só acena com a cabeça)

Personagem A: EU SOU PAI DE FAMÍLIA, SOU TRABALHADOR, SOU CASADO, SOU BEM SUCEDIDO! NÃO SOU REVOLTADO! SE EU FOSSE REVOLTADO EU NÃO TINHA NADA!!!

Personagem C: Mas eu, de certa forma, posso dizer que sou bem sucedida, que tenho tudo que quero, e sou super revoltada, uai! Não tem nada a ver uma coisa com a outra...

Personagem B: É,uai, não entendi. Eu acho que o mundo está muito estranho, ninguém mais liga para os outros.

Personagem A: É, as pessoas não valem nada mesmo, todo mundo só quer se dar bem.

Personagem C: Ah, mas ainda acho que existe muita gente boa, se fossemos todos ruins, nossa, nem imagino como seria!

Personagem A: Eu acho que é tudo culpa dos políticos, esse bando de ladrões. ALGUÉM TEM QUE EXPLODIR BRASÍLIA!!!

Personagem C (perdendo a paciência): MAS BRASILIA É RESULTADO DO VOTO, VOCÊ LEMBRA EM QUEM VOTOU NA ÚLTIMA ELEIÇÃO? SABE O QUE ELE FEZ???

Personagem B: Pois é, a gente não sabe votar, este ano vai ser dose, aquele ex-prefeito querendo ser eleito de novo, socorro, onde essa cidade vai parar??

Personagem C: Eu já disse que se ele se eleger, eu me mudo. Enquanto ele for prefeito eu não vou morar aqui!

Personagem A: MAS ELE CONSTRUI O HOSPITAAAAL!!!!

Personagens B e C, juntas: COMO ASSIM?


Personagem A (finge que não ouviu e continua): Ele parou de cobrar IPTU, e essa cambada que tá ai, aquele outro, que é defensor de vagabundo, de bandido, vai voltar com o IPTU. EU NÃO PAGO IPTU! É UM ABSURDO!! EU COMPRO UM CARRO POR ANO COM O VALOR DO IPTU! EU NÃO ACEITO PAGAR IPTUUUUUUUUU!!!

Personangem C: MAS É UM ABSURDO! TODO MUNDO TEM QUE PAGAR IPTU, É PRATICAMENTE O ÚNICO IMPOSTO QUE É JUSTO, PORQUE IMÓVEIS DE RICOS PAGAM MAIS!!!!

Personagem B: E eu lembro como era, quando ele era prefeito, não tinha nada, só aquela casca de hospital que foi inaugurado só para mostrar. Quando o governo atual assumiu, não tinha nem gaze no hospital, a corja dele, cabide de emprego, levou até os clipes de papel!

Personagem A: MAS POLÍTICA É ASSIM MESMO, TODO MUNDO FAZ!!!!!

Personagem C (visivelmente se contendo): MAS É POR ISSO QUE ESTÁ TUDO ASSIM! Como pode, um rapaz jovem como você, ter essa cabeça?

Personagem A: Mas prefeito bom aqui foi aquele que asfaltou as ruas tudo. Ele era bão! Rouba mas faz!!!

Personagem B: Meu filho, governo bom foi este, pena que não pode continuar.

Personagem C: Também acho. Por isso vou votar no candidato de continuidade.

(Personagem B vê que o caixa vagou, e vai sacar dinheiro.  Nisso, surge um senhor idoso. Personagem B percebe e cede a vez.)

Personagem A: Ah, eu não aceito isso não, uai! Esse povo é muito folgado!

(O senhor idoso tenta, tenta, enquanto o papo meio que morre entre A, B e C. Até que o velhinho se vira e pede ajuda. Personagem B e C se oferecem para ajudar. Não adianta, o cartão não foi reconhecido, elas sugerem que ele vá até a agência. Personagem B vai sacar seu dinheiro. Personages A e C aguardam na fila.)

Personagem A: Eu não ajudo não, esses véio, porque depois dá confusão. Você... não é que você seja velha... é que ....

Personagem C: hum.

(Surge o Personagem D, e para no meio do corredor, fora da nova fila formada por B, agora no caixa, A e C.)

Personagem C: Senhor, a fila para o banco X é aqui.

Personagem D: Não é não, sempre foi aqui.

Personagem C: É que aí fica no meio do corredor, atrapalha as pessoas passarem, a gente achou melhor fazer aqui.

Personagem D: Problema seu. A fila é aqui, sempre foi, e eu não vou mudar.

(Personagem C, olha, perplexa, para o personagem A, que sorri amarelo.)

Personagem C: Tá vendo porque as coisas não melhoram? Uma coisa mais boba, que é muito mais prática, não muda. É brincadeira...

Personagem A: Ah, mas... ele tem a opinião dele....

(Personagem A visivelmente desconversa. Personagem C fica visivelmente fumegando. Personagem B termina de usar o caixa, se despede e vai embora. Personagem C fica no seu lugar, perpendicular ao corredor, e não na frente do caixa, no meio do corredor. Outras pessoas chegam, e vão para trás do personagem D. Personagem A usa o caixa e sai. Personagem C usa o caixa, e sai.)


(Cai o pano.)


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Esse pequeno drama aconteceu comigo ontem. Está bem resumido, houve algumas adptações, mas a essência da conversa foi essa. E a fala final, de D, também.

Eu estava de vestido preto e branco.

Acho que se eu tivesse inventado o Personagem D para fazer o fechamento daquele diálogo com A, não teria sido mais conciso e preciso ao fornecer o exemplo claro do que falávamos. 

Foi épico, quase. Uma pequena tragédia, em um ato.

Seria cômico, se não fosse trágico. 
E real, infelizmente. Apesar de parecer meio... teatro do absurdo.


(ah, me perguntaram no FB o que é cissexual, e eu linkei este post: O que é cissexismo. Achei relevante colocar, porque, como já havia descrito as pessoas pela idade, pelo gênero e pela cor, achei que era importante deixar ainda mais claro que nenhum dos personagens pertence - ao menos aparentemente - às minorias tradicionamente oprimidas socialmente, apesar de, enquanto mulher cis, hétero, eu sofrer, sim, diversas discriminações. Acho que, na análise que eu não fiz da cena, aqui no post, é importante contextualizar ao máximo as minhas impressões de cada personagem, para que o leitor possa também situá-los. Pode ter sido desnecessário? Será? )

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