"Sou barrada à porta por um agente que me pergunta qual é o assunto. Explico-lhe que quer participar o roubo da minha carteira.
- Se a senhoras não se importar de voltar daqui a meia hora, é que estão lá dentro a interrogar um detido e aquilo está um bocado bera...
- Meia hora? Mas eu tenho que ir trabalhar.
- Tenha paciência. É que a gente só tem uma sala e estão a interrogar um detido... A senhora faça assim, vá beber um café e daqui a um bocadinho volta e a gente trata-lhe do assunto, está bem?
Obedeço, derrotada pelos fatos. Quando regresso, está à porta outro agente, de bigode façadunho e cara de poucos amigos.
- Faisfavore?
- Venho participar um furto.
- Pode dirigir-se ao guichê - responde, entre pergitotos azuis.
Entro para o átrio da esquadra e vislumbro um vulto por detrás dos vidros foscos do dito guichê, como dizia o agente bigodudo.
- Faisfavore? - inquire a autoridade sentada numa cadeira de pau. Deve ser a senha da esquadra.
- Venho participar um roubo - respondo com um suspiro.
O subchefe Costa, pelo menos é o que diz na plaquinha que tem pregada no colete azul-escuro da farda, olha-me inexpressivo.
- É só um momento por favor. Atende três chamadas seguidas que passa ao senhor comissário enquanto prepara uma resma de folhas ensanduichadas em outras de papel carbono e as enfia com rigor e precisão na ranhura de uma máquina de escrever que é certamente uma antepassada da minha Remington, a qual já data de 1956. O subchefe de uma esquadra é por assim dizer pau para toda obra. É ele que toma conta de toda e qualquer ocorrência. De telefonista a secretário, faz um pouco de tudo. Depois de tudo preparado, volta a fitar-me com o mesmo olhar vazio que me lembra o dos coelhos de talho onde a minha mãe compra carne.
- A participação é de que?
- Furto - respondo lacônica.
- Data da ocorrência?
-Perdão?
- Data da ocorrência do furto, minha senhora.
- No feriado passado, dia 13 de junho.
- Local...
- Praia da Cabana, Costa da Caparica.
- Descrição da ocorrência...
- Deixei minha mochila na mala do carro de uma amiga e fomos para a praia. Quando voltamos ao carro a mochila tinha desaparecido.
- Umm... muito bem. E o que é que tinha lá dentro?
- Tudo: chaves de casa, do carro, carteira...
- Do carro em que a senhora ia?
- Não, do meu carro.
- Então a senhora não levou sua viatura?
- Pois se ainda agora lhe disse que fui no carro de outra pessoa!
- Humm, e mais?
- Carteira com documentos, agenda Filofax.
- Filo o que?
Esqueci-me que entre um polícia e um filofax não deve haver muita familiaridade.
- É uma agenda com telefones, apontamentos, datas de reuniões, olhe, é uma agenda de trabalho.
- Umm,,, muito bem - Os dedos tamborilam ociosamente em cima das letras, só dois, porque o subchefe não frequentou corretamente um curso de datilografia ao ingressar na academia. Toc, toc, toc, uma hesitação aqui e outra ali, o trim de quem chega ao fim da linha, o raack da máquina ao passar de linha com um empurrão firme do polegar contra o indicador, tudo a dezesseis rotações. Ao fundo da sala decrépita e encardida um transistor canta com entusiasmo algo como rancoroso, mentirosa, mentirosa...
O subchefe trauteia a melodia com ar distante enquanto vai preenchendo os diferentes espaços do formulário da participação. De vez em quando o telefone toca e o subchefe é por duas vezes vítima de telefonemas insultuosos e passa mais três chamadas ao senhor comissário. Olho para o relógio com muita impaciência. São quasee dez e meia e controlo meu desespero lendo o Quadro de Honra da Polícia que se encontra afixado no hall. Como a lista de objetos furtados é enorme, o subchefe vê-se obrigado a virar a página, opção que executa com lentidão e método, separando as folhas e virando-as ao contrário, uma a uma, sem esquecer nunca de as intervalar com o papel carbono.
Finalmente acabou a aula de datilografia. O subchefe aconselha-me a telefonar dentro de uma semana para a seção dos Perdidos e Achados, mas, segundo ele diz, se não tinha dinheiro é provável que as coisas não apareçam. Chego à conclusão que o melhor é andar sempre com dinheiro, não se dê o caso de ser assaltada e correr o risco de deixar os ladrões com a sensação de estarem a ser defraudados."
O trecho acima é so livro "Sei lá", de Margarida Rabelo Pinto, escritora portuguesa. Bem no estilo chic-lit (literatura de mulherzinha, detesto essa expressão), conta a história de uma mulher solteira, e três amigas, com personalidades distintas, pela vida profissional, familiar, amorosa e sexual da Lisboa do final do século XX.
A cena descrita ocorre no interior de uma "Esquadra", que eu imagino que seja o que para nós é a delegacia, ou uma companhia da PM, ou um POV...
A idéia é ir trazendo trechos de literatura de ficção, que falem sobre o contato dos personagens com as polícias. Não de livros de mistério ou policiais, mas de literatura comum, romances, contos.
Tive essa idéia quando relia o livro "Sei lá", no final de semana.
E recebi um e-mail de um colega, com um trecho da literatura brasileira, Fogo Morto, de José Lins do Rego:
"A velha Adriana voltou para casa mais tranquila. Vira o marido com os parentes ao seu lado. Mas o Tenente Maurício ficara na vila como um rei. Delegado e Prefeito não valiam nada para ele. A força que ficara no mercado enchia de pavor as ruas do pobre Pilar."
Vê se não parece com o bigodinho descrito no tal trecho do livro acima?
Então pensei: por que não?
E resolvi começar por este.
Vejamos: o livro é da década de 90, no final. Demos um desconto, Portugal ainda não era União Europeia...
Alguma semelhança com a (s) nossa (s) polícia (s)?
Na verdade, não sei como funciona o sistema de justiça criminal português. Parece que também existem duas polícias, uma Judiciária, os moldes do que é a nossa PC (na verdade, nossas PC's foram decorrentes do modelo português ), de investigação, e outra uniformizadas, de carater ostensivo e preventivo, como a PM. Vou tentar descobrir mais. Por enquanto, vamos ficar com a Wiki!
Por hoje é só, pessoal!!
Depois, retornamos com a programação normal!!!
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