No dia 19 de maio, quarta-feira da semana passada, o brasileiro Helio Barreira Ribeiro, de 47 anos, morador do Andaraí, no Rio de Janeiro, foi morto por um disparo de fuzil, efetuado por um policial militar do BOPÉ. Helio estaria na laje de sua casa, e portava uma furadeira. O policial teria confundido a ferramenta com uma submetralhadora israelense, infelizmente comum entre os envolvidos com a criminalidade violenta no Rio (segundo consta, não posso atestar se é comum ou não, porque aqui em Minas ainda não é comum não, quando são apreendidas armas mais pesadas, é um fato de destaque, o que não significa que elas não possam estar por aí, nas nossas vizinhanças...)
Li o primeiro post sobre o tema no blog do Thiago, o Memória Individual, que já recomendei aqui.
Deixei lá um comentário, e acabei resolvendo falar também sobre o tema aqui, já que é um assunto do qual sempre trato nas aulas de Direitos Humanos, dos cursos de formação dos Agentes de Polícia Civil, qual seja: o uso da força letal.
Todo policial brasileiro, seja ele estadual (policial civil ou militar) ou federal (policial federal ou rodoviário federal) tem o porte de arma de fogo, e na maioria das vezes, uma arma do patrimônio do Estado, que lhe é depositada para a prestação do serviço. Junto com o porte, vem a autorização estatal para a sua utilização. E a primeira coisa que aprendemos nas aulas de manejo de arma de fogo é que arma de fogo é para matar (pode só ferir, sim, mas o objetivo é matar, foi para isso que elas foram inventadas. Não foi para ferir à distância, nem para intimidar, nem para ameaçar. A utilização de uma arma tem sempre o potencial de letalidade que lhe é inerente!)
Muitos aspirantes (alunos do curso de formação, que é etapa do concurso, aqui em MG, logo, na ACADEPOL não somos ainda policiais, mas aspirantes a policiais, das diversas carreiras - Delegado, Perito, Legista, Agente e Escrivão) tem a visão de que podemos usar a força (mesmo que não letal) com base na excludente de ilicitude do "estrito cumprimento do dever legal".
E sempre dou a mesma resposta: nós não somos CARRASCOS!
O Brasil não está em GUERRA EXTERNA DECLARADA!
E mesmo que estivesse, não seríamos nós os investigadores-acusadores-julgadores-executores da pena.
Então, ressaltamos que A ÚNICA HIPÓTESE PARA A UTILIZAÇÃO DA FORÇA LETAL É A LEGÍTIMA DEFESA, PRÓPRIA OU DE TERCEIROS.
O que vem a ser a legítima defesa? Mesmo quem não tem formação em Direito tem conhecimento do que é a legitima defesa, pelo menos através de um senso comum. A legítima defesa é prevista no Código Penal, no artigo 25: entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Traduzindo e esclarecendo, por partes:
Moderadamente – significa que assim que cessada a agressão, o uso da força (dos meios de repelir a agressão) deve cessar, sob pena de se transformar em excesso, o que é punível.
“Empregar moderadamente os meios necessários significa usar os meios disponíveis, na medida em que são necessários para repelir a agressão. Deverão aqui considerar-se as circunstâncias em que a agressão se fez, tendo-se em vista a sua gravidade e os meios de que o agente podia dispor. Sempre convém salientar, que a possibilidade de fuga não exclui a legítima defesa, obviamente sendo recomendada quando possível, como no caso de agressão praticada por portadores de necessidades especiais.”
Meios necessários:
“Meios necessários são todos aqueles suficientes à repulsa da agressão injusta que está ocorrendo ou prestes a ocorrer. Ensina a doutrina majoritária, que os meios necessários além de suficientes, devem estar disponibilizados no momento da agressão, existindo em todo caso, a observância da proporcionalidade entre o bem jurídico que se visa resguardar e a repulsa contra o agressor.
Injusta agressão, atual ou eminente:
É na verdade o primeiro requisito: “a existência de agressão injusta, atual ou iminente. Agressão é o comportamento humano capaz de gerar lesão ou provocar um perigo concreto de lesão.
Além da agressão humana (ação ou omissão) é imprescindível que a mesma seja contrária ao direito, ou seja, proibida pela lei e real, ou seja, não suposta.
A agressão humana injusta e real deve ser marcada pela atualidade ou pela iminência. Significa que a mesma deverá estar ocorrendo ou prestes a acontecer e nunca quando já terminada.
A ação de defesa promovida em face da agressão, deve ser praticada com vontade de defesa. Isto indica a intenção do agredido de se defender ou de defender um bem jurídico de terceiro.
O que pode acontecer, além da legítima defesa real, própria ou de terceiros, é a legitima defesa putativa, pelas circunstâncias fáticas.
A lei brasileira assim dispõe:
Descriminantes putativas
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo
Assim, temos um monte de possibilidades jurídicas, a depender de variáveis tão díspares quanto a repercussão midiática e as implicações ideológicas dos responsáveis pela apuração e processo do fato.
O que levou o soldado a se imaginar em situação de legitima defesa?
Quais as circunstâncias? O fato de estar a vítima em uma área em fase de ocupação? (acho o nome irônico, diante das denúncias que vem ocorrendo... Unidade de Polícia Pacificadora... mas a maioria das teses de segurança pública e mesmo de prevenção atuais preconiza que antes de o Estado voltar a se instalar - voltar? É de duvidar, já que na maior parte dos locais, acredito que ele nunca esteve, não é? - é preciso a repressão qualificada, e a ocupação policial pelas forças policiais é parte desta estratégia)
O Thiago coloca que se fosse em outro local – condomínio de luxo - o policial não teria atirado. Digo mais – se fosse em condomínio de luxo, a polícia nem entraria, porque a classe alta não gosta de polícia nem um pouco mais do que gostam (ou desgostam) os moradores de favelas ou bairros pobres.
Os estigmas de corrupção e arbitrariedade associados às policias não agradam a classe média, em geral. Só quando é a vez dela molhar a mão do agente para conseguir algo de seu interesse. Nesse caso, se o policial é incorruptível, é visto como “ruim de jogo”. E quando o carro é roubado, e o ladrão preso, sem o carro, então a violência se “justifica”, e ruim é o tal “dos direitos humanos, que só protege bandido, né doutora?”
Estou me desviando do foco.
O foco aqui é a responsabilização policial.
Jaqueline Muniz escreve muito bem sobre isso, então, remeto ao texto dela.
Só faço aqui, para encerrar, mais um comentário:
Em geral, o policial não é responsabilizado, é culpado.
Culpado porque não há uma discussão séria e pública sobre os limites do mandato policial, sobre o que pode e o que não pode, sobre os direitos e deveres do cidadão em uma abordagem, sobre os deveres e poderes de um policial.
E se o morto é uma pessoa com “passagens” ( que p... é essa?! – “Tenho passagem não, tenho passe único!”), então a atuação foi legítima.
Se é um trabalhador, não foi.
E não é assim que tem que ser: se houve excesso na legítima defesa ou se houve culpa na descriminante putativa, independente de se tratar de “trabalhador” ou de “bandido”, o tratamento deveria ser o mesmo, para absolver ou condenar quem fez o uso da força.
Existem vários textos, não só o da Jaqueline Muniz, mas também um ótimo, do Roberto Kant de Lima, sobre um fato ocorrido no centro do Rio, há mais de dez anos, quando um cabo executou dois assaltantes. Deu no JN e o cabo foi elogiado. O texto é intitulado: "Direitos civis, Estado de Direito e 'Cultura Policial': A formação policial em questão"
O pior de tudo é a formação policial brasileira (não sei se é só a brasileira, não conheço as polícias do mundo afora, nem seus treinamentos... então desculpem os colegas brasileiros) que é focada só na repressão, na defesa do Estado e não da sociedade, e quando protege a sociedade, não protege a todos da mesma forma, se é que me faço entender.
Criminalizar os pobres é uma tendência mundial, desde a vitória (mais ou menos, não muito bem explicada só por ela) do tal “tolerância zero” na Nova Iorque do Giuliani. E isso não deu muito certo nos EUA e na Europa, onde as desigualdades são muito menores. Imaginemos isso aqui, no nosso cenário familiar brasileiro, muito bem explicado pelas letras que seguem abaixo...
"tudo começou quando a gente conversava naquela esquina alí de frente àquela praça
veio os homens e nos pararam
documento por favor
então a gente apresentou
mas eles não paravam
qual é negão? Qual é negão? o que que tá pegando?
qual é negão? Qual é negão?
é mole de ver que em qualquer dura
o tempo passa mais lento pro negão
quem segurava com força a chibata
agora usa farda engatilha a macaca
escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista
pra passar na revista
todo camburão tem um pouco de navio negreiro
todo camburão tem um pouco de navio negreiro"
(O Rappa – Todo camburão tem um pouco de navio negreiro)
"A favela é a nova senzala, correntes da velha tribo
E a sala é a nova cela, prisioneiros nas grades do vídeo
E se o sol ainda nasce quadrado, e a gente ainda paga por isso
E a gente ainda paga por isso, e a gente ainda paga por isso
E a gente ainda paga por isso
Eu não quero mais nenhuma chance, eu não quero mais... revanche"
(Lobão – Revanche)
Acabei me extendendo muito, e não sei se ficou compreensível tanto o texto quanto meu posicionamento. Mas isso a gente resolve. A morte do seu Helio é que não tem remédio.
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