Recebi este e-mail na época em que ocorreram os fatos, e escrevi o texto abaixo, que compartilhei com alguns amigos, em grupos de discussão. Infelizmente, o assunto ainda é atual.
Em janeiro deste ano, uma cabeleireira foi morta em seu local de trabalho, pelo ex-marido, contra quem vigorava uma medida protetiva, de restrição de aproximação; Ele não só descumpriu a medida, como entrou, armado, no salão, e atirou duas vezes contra a ex-mulher. E houve quem também culpasse a vítima...
*******************************************************
Subject: Fw: Eloá Parecia ter 15 anos?
Eloá Parecia ter 15 anos? ********************************************* Abri meu e-mail ao chegar da aula, e recebi a mensagem acima, com um anexo incluindo uma montagem, no Powerpoint, de fotos de adolescentes em poses “sensuais”, sendo que uma delas supostamente é a adolescente Eloá, vítima do crime de homicídio, perpetrado pelo ex-namorado, na cidade de Santo André-SP. Não devia ter aberto. É uma mensagem que me lembra aquela, dos três rapazes entregues pelo Exército aos traficantes da facção rival, e que foram mortos, obviamente. Trata-se claramente de uma tentativa de culpar a vítima. Os três rapazes, porque tinham passagens pela polícia, e eram investigados pela prática de crimes graves, foram ironicamente chamados anjinhos, e a barbárie cometida foi justificada. No caso da adolescente, a mensagem não tem o mesmo tom agressivo, até tenta um suposto resgate de valores. No entanto, ali mesmo está a justificativa da barbárie: era uma menina sem valores, sem família decente, e provocava o rapaz com fotos “sexies”. Realmente, nas fotos aparecem imagens de jovens com biquínis, roupas íntimas ou bem curtas e decotadas, fazendo poses de revista masculina. Percebe-se que se trata de adolescentes, e que os locais onde foram feitas as poses eram locais simples, sem as superproduções das revistas ditas ‘masculinas’. Há pouco tempo, nos EUA, uma cantora e atriz adolescente, filha de cantores de sucesso, e ela mesma estrela de um seriado de sucesso, causou choque na puritana sociedade norte-americana ao posar, não para uma revista masculina, mas para a Vanity Fair, uma publicação centenária de variedades. Não sei definir um paralelo no Brasil, seria uma mistura de revista de cinema, moda, entrevistas, política... A fotógrafa foi a famosa Annie Leibowitz, e a modelo a cantora Miley Cyrus. O bafafá? A modelo posou de maquiagem borrada, enrolada em um lençol, sugerindo nudez e a prática de atividades pouco condizentes com sua idade. Choque? Diante de uma sociedade que coloca as mulheres como objetos de desejo, que cria produtos de mídia como o seriado Gossip Girl (para quem não conhece, um seriado que é o chamado “Sex and the city” para adolescentes, baseado na obra de uma suposta socialite nova-iorquina, que retrata o cotidiano de jovens endinheirados e ociosos do Upper East Side de Manhattan)? Que glamouriza a juventude sem atitude, consumista, ociosa, alienada e irresponsável? No Brasil não ficamos atrás: quem não conhece (ou ouviu falar) da novelinha Malhação? Transmitida no horário da tarde, glamouriza os belos corpos das jovens, e retrata situações supostamente cotidianas dos jovens brasileiros. Confesso que há anos não assisto ( e confesso também que assistia Gossip Girl...), então não sei como está atualmente, já que na minha época, Malhação realmente se passava em uma academia... quantos brasileiros passam o dia na academia? Nem de ginástica nem na outra... Bem, e os sonhos das brasileiras, atualmente? Não é ser Miss... é ser “the next top model”, e aparecer seminua, fazendo poses nada normais, na TV a cabo, sendo esculachada pelos ‘profissionais da moda’! É ser a próxima BBB, a próxima ex-miss, ex-BBB, modelo e atriz. Ou ser “mulher-fruta”. Culpar a vítima por repetir esses padrões é muito simples. Culpar os pais por não vigiarem a mocinha indefesa, não menos simples. Culpar essa inversão de valores, simplérrimo! Pois morro de medo se respostas simples. Em situações físicas, vá lá, como aquela do geólogo que ajudou a tirar o cisterneiro do fundo do poço, com uma solução simples. Nesse caso a navalha de Occam funciona, sim. Mas quando se fala de relações sociais, não acredito não. A intenção de quem, sabe-se lá porque, perdeu tempo procurando fotos da vítima, fazendo uma montagem do PowerPoint e remetendo para toda a lista de contatos pode ser “boa”, mas derrapou feio... A verdade é que a tragédia aconteceu porque o autor se sentia “dono” da namorada. Se foi ele quem terminou, como disseram na imprensa, e depois quis voltar, que tinha ela que recusar? Afinal, ele era um amor, tão educado! Pois me parece que ele sentia pela namorada o mesmo que sinto por um objeto inanimado qualquer. É, porque pela minha gata de estimação eu tenho o cuidado de não achar que é toda hora que quer colo, ou carinho, ou que ela está 24 horas por dia à minha disposição, sem considerar quaisquer outras possibilidades. Apenas com uma chave, ou um papel usado, ou uma caneta qualquer eu teria o mesmo descuido, de achar que posso descartar e depois recuperar, e o objeto, como coisa que é, não reage, não responde, não tem vontade ou desejos próprios. Mas o autor foi criado nessa sociedade. E o autor era um bom rapaz.... Foi criado vendo as meninas de 12 anos se vestirem como mulheres de 25. Foi criado vendo novelas onde ainda se reproduz o estereotipo da mulher-objeto. Foi criado vendo TV, com comerciais de desodorantes masculinos que mostram mulheres seminuas como salmões-fêmeas na piracema, enfrentado todos os obstáculos para alcançar o macho. Só que as fêmeas do salmão já foram fertilizadas, neném, e estão correndo pela sobrevivência da espécie. E na natureza, são os machos quem competem pela atenção da fêmea. Mas não pega bem, né? Não vai vender desodorante... Não, o autor não era um bom rapaz. Porque se fosse, não teria feito o que fez. A mídia não é culpada de tudo. A mídia reproduz nossa cultura. E nos achamos melhores que os somalis que apedrejaram até a morte uma adolescente de 13 anos que foi estuprada e então acusada de desonrar a família. Culpam a vítima... na Somália dominada pelos senhores da guerra que armam meninos de 8 anos com metralhadoras. E aqui, na terra do futebol e da mulata... Adolescentes de classe média agridem uma trabalhadora, e se justificam porque “pensaram que era uma prostituta”. Esse é o mesmo pensamento que enseja a divulgação dessas fotos, sejam ou não da vítima. O que faz algum homem pensar que qualquer mulher, seja ela professora, doméstica, prostituta ou médica, pode ser agredida? Que qualquer ato de qualquer mulher é uma provocação aos incontroláveis instintos sexuais masculinos? Não culpem a vítima por ter 15 anos e estar deslumbrada com um namorado mais velho. Essa é a lógica do sistema. Não seja hipócrita. Talvez, se fosse sua filha, e você que está lendo isso for homem, você não gostasse – afinal, você é homem, e sabe o que passa na cabeça dos homens... e você, mulher, sabe o que se passa na cabeça das mulheres! Eloá parecia ter 15 anos? Sim, parecia e tinha. Reproduzia, consciente e inconscientemente, os padrões esperados pela sociedade onde vive. Ela estudava. Talvez, se tivesse sobrevivido, chegasse até a faculdade, quem sabe, e parasse de achar que seu corpo era tudo que tinha. Ou não. Pois o padrão é tão totalizante que não admite questionamentos, e atinge mulheres de todas as faixas, etárias, sociais, raciais, econômicas, culturais... E o autor... Ele tem 22 anos, ele tem 55 anos, ele tem 30 anos. Ele é branco, negro, asiático, brasileiro, somali, americano, argentino e japonês. Ele é analfabeto, semi-analfabeto, graduado, mestre e doutor. Ele é pobre, rico, miserável e remediado. Ele é feio, bonito, magro, gordo, bem vestido, mal-ajambrado. Ele é todos e qualquer um. Nenhum de nós é inocente. Nenhuma de nós. Continuamos a criar nossos filhos, filhos da geração Xou da Xuxa, de forma desigual, reproduzindo a desigualdade e a inferioridade que geram agressões como a de Santo André, como a de Contagem, a de Belo Horizonte, a do Rio de Janeiro, a de Nova Iorque, Londres, Paris, Lisboa, ou alguma cidade obscura na Somália, na Tunísia ou no Afeganistão: nessa seara, o talibã é aqui. Nenhum de nós é inocente. Nem a vítima. Mas não a culpem, porque sim, ela só tinha 15 anos. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário