sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Crimes sexuais

No Código Penal Brasileiro, cuja parte geral é de 1940 - isso mesmo, 1940! - os delitos contra a dignidade sexual eram inicialmente denominados “CRIMES CONTRA OS COSTUMES”

Somente a partir de agosto de 2009, com a publicação da Lei 12.015, o título IV do Código Penal (Decreto-lei 2.848/40) passou a denominar-se “DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL”.

Quis o legislador de 1940 proteger, ao punir as condutas de constrangimento sexual, não a vítima imediata, via de regra, ser humano do gênero feminino, mas os costumes de uma sociedade patriarcal, na qual somente as mulheres ocupavam as posições de esposa, filha e mãe mereciam a proteção da lei, e aquelas que se desviavam destes papeis, só mereciam proteção decorrente.

Em trabalho sobre a Lei 9.099/95, intitulado “Juizados Especiais Criminais e seu déficit teórico”, de Carmen Hein de Campos, a autora discorre:

“Se por um lado a Lei 9.099/95 recepcionou a criminologia crítica e seu discurso minimalista, por outro, ela apresenta um déficit teórico pela não-acolhida da criminologia feminista, embora esta tenha influenciado fortemente a criminologia crítica. Segundo Elena Larrauri, de todos os dados que influenciaram a criminologia crítica, o mais importante foi a presença do movimento feminista. A presença de mulheres no mundo dos homens criminólogos contribuiu para ampliar o objeto da criminologia crítica. A principal contribuição do movimento de criminólogas feministas foi identificar que a tese da seletividade não contemplava, em sua origem, a desigualdade de gênero nos diversos grupos sociais. Ao excluir a assimetria de gênero do seu objeto, a criminologia crítica excluía a discriminação de metade da população composta por mulheres. A ausência do ponto de vista feminino nas análises não permitia uma compreensão da conduta delitiva. As criminólogas feministas sustentam que a gênese da opressão da mulher não pode ser reduzida à opressão de classe, pois ela é anterior e distinta, produto da estrutura patriarcal da sociedade. Com esse enfoque, foi possível questionar a ideologia da superioridade masculina e deslocar a pesquisa criminológica para os sistemas de controle social informal e sua relação com o controle formal quando aplicado às mulheres. A forma pela qual os sistemas de controle e seus agentes concebem o comportamento das mulheres cria e reproduz os estereótipos de gênero. Assim, as feministas distinguiram o capitalismo do patriarcado, demonstrando que essas estruturas não operam simultaneamente: determinadas leis podem beneficiar as classes dominantes, outras os/as trabalhadores/as, porém beneficiando homens em detrimento das mulheres. A repressão da sexualidade feminina e o medo de uma violência sexual dirigida especialmente às mulheres, além de lhes atribuir um determinado papel, também mantêm o poder masculino na sociedade. As criminólogas, ao incorporarem a categoria gênero em seus estudos, contribuíram cientificamente porque maximizaram a compreensão do funcionamento do sistema penal, social e político, mostrando que a aparente neutralidade e o tecnicismo com que se formulam os discursos jurídicos escondem uma visão dominantemente masculina. (CAMPOS, Carmen Hein. 2003 – disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2003000100009&script=sci_arttext > acesso em 27 de abril de 2010)

Os papeis sexuais, nas sociedades, são extremamente definidos. Mesmo diante de uma pretensa “revolução sexual”, propiciada pela difusão de métodos contraceptivos eficientes, não há que se discutir que ainda hoje, em pleno século XXI, ainda temos a concepção de que a mulher é sexualmente passiva, ou deve ser, enquanto o homem é criado para ser o predador sexual. Na literatura científica (ou pseudocientífica), temos exemplos de estudos que pretendem embasar o senso comum (muito comum), quanto aos estereótipos de gênero.

Dispõe o artigo 213 do Código Penal, com as alterações recentes da Lei 12.015/09: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Qual seria a violência exigida pelo legislador, para a caracterização do delito previsto no tipo penal?

Em não tão remotas eras, exigia o julgador que a vítima exercesse resistência heróica à conspurcação de sua virtude. Temos exemplo disso nos seguintes julgados:

" Uma jovem estuprada há de opor-se razoavelmente à violência, não se podendo confundir com inteiramente tolhida nessa repulsa. Quem nada faz alem de tentar gritar e nada mais. A passividade que, muitas vezes confunde com a tímida reação, desfigura o crime, por revelar autêntica aquiescência" (TJSP, rel Odyr Porto, RT vol.429/400)

"Nunca será demais lembrar a advertência de Basileu Garcia em estudo sobre os crimes contra a liberdade sexual, quando observa a tendência da mulher, que ferida no seu pudor, embora participando de uma relação consentida, forma situações capazes de escusá-la perante terceiros, até mesmo com a indicação de que foi anestesiada"(TJSP, rel.Márcio Sampaio, TJTJSP 8/548).

"A carência de qualquer vestígio de violência, somada ao silencio da ofendida são circunstancias que, a par de outras, concorrem para desvanecer a autoria do crime de estupro"(TJPR, rel.Lemos Filho, RT vol.484/340)-grifei.

"Estupro é a posse sexual da mulher, por meio de violencia física ou moral, isto é pela força ou por grave ameaça. Supõe dussebnação sincera e positiva da vítima, manifestada por inequívoca resistência, não bastando platônica ausência de adesão, recusa meramente verbal, oposição passiva ou inerte ao ato sexual"(TJSP, rel. Jarbas Mazzoni, RT v.607/291).

"Para tipificação do estupro exige a lei que a vítima efetivamente com vontade incisiva e adversa, oponha-se ao ato sexual com toda sua força, ao atentado a liberdade sexual. Não se satisfaz, pois, com uma posição meramente simbólica, um não querer sem maior rebeldia"(TJSP, rel.Camargo Sampaio, RT vol. 537/287).

Verifica-se que a maioria de tais julgados são anteriores à conquistas relevantes da luta pela erradicação de todas as formas de violência contra a mulher, ainda que tenham sido citados em acórdão do TJSP, publicado em 2004 (APELAÇÃO N° 4243103/8).

Entre tais conquistas, temos:

Convenção de Belém do Pará, 1994 - Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Em termos regionais destaca-se a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA em 06 de junho de 1994, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995 e promulgada pelo Decreto 1.973, de 1º de outubro de 1996. Esta Convenção define a violência contra a mulher e estabelece sua dimensão: “(...) entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Artigo 1º).

A Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) reconheceu formalmente a violência contra as mulheres como uma violação aos direitos humanos. Desde então, os governos dos países-membros da ONU e as organizações da sociedade civil têm trabalhado para a eliminação desse tipo de violência, que já é reconhecido também como um grave problema de saúde pública.

A edição da Lei 11.340, chamada Lei Maria da Penha, de 2006, fundamenta-se exatamente em tais definições, entretanto, explicita sua aplicação (da referida lei) somente aos casos de violência doméstica e familiar, sendo que em sua introdução, dispõe:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

A supramencionada lei explicita em seu artigo 7º as formas de violência contra a mulher:

São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

No caso da violência sexual, fora do espectro da Lei 11.340/06, a ambigüidade é maior, o que dificulta identificá-la. A violência pode ser exercida com o uso da força, intimidação, coerção, chantagem, manipulação, suborno, ameaça ou qualquer mecanismo que anule ou limite a vontade pessoal. Isto também inclui obrigar a vítima a praticar atos com terceiros (Ministério Saúde, 2000).

Violência Sexual é um conceito entendido como violência de gênero caracterizada pelo abuso de poder no qual a vitima é usada para gratificação sexual do agressor, sem seu consentimento, sendo induzida ou forçada a praticar sexo com ou sem violência física. (Ballone & Ortolone, 2003).

Violência sexual é agressão à liberdade do indivíduo, manifesta no domínio de um sobre o outro. Abuso implica em ultrapassar limites, transgredir a noção de poder e confiança..

Segundo, Valéria Pandjiarjian, em seu estudo sobre os estereótipos de gênero nos processos judiciais e a violência contra a mulher na legislação,

“Denominada violência de gênero, a violência física, sexual e psicológica contra a mulher é manifestação das relações de poder historicamente desiguais estabelecidas entre homens e mulheres. Tem, portanto, no componente cultural o seu grande sustentáculo e fator de perpetuação.

O fenômeno da violência contra a mulher, em especial a que ocorre no âmbito doméstico e das relações intrafamiliares, acarreta sérias e graves conseqüências não só para o seu pleno e integral desenvolvimento pessoal, comprometendo o exercício da cidadania e dos direitos humanos, mas também para o desenvolvimento econômico e social do país. O custo dessa violência reflete-se em dados concretos.”(http://74.125.155.132/scholar?q=cache:_Db_wndcf4cJ:scholar.google.com/&hl=pt-BR&as_sdt=2000)

Imaginemos a seguinte situação: uma mulher, adulta, capaz de consentir validamente, logo, não se enquadrando na figura do vulnerável, trazida pela Lei 12.015/09, consente em, publicamente beijar um homem, que conhecera na mesma noite. Em seguida, não bastando tal ato, consente em ir para a casa de tal homem, e lá, consente em entrar em um quarto.

A partir de que momento consentiu tal mulher, ora vítima destes autos, em permitir o ato sexual? A partir de qual momento sua negativa de consentimento perderia a validade?

A vítima que entrou no “covil” do predador não merece a proteção da lei? Seria o estupro uma cortesia, como na malfadada decisão sobre o autor de estupro, nos idos da década de 70?

Cito Fausto Rodrigues de Lima, promotor de justiça no Distrito Federal:

Num país em que pessoas são violentadas apenas por usarem roupas curtas, o retrocesso legal privilegia a tendência de se culpar as vítimas, intimidando-as. Pretendem reforçar a (falsa)cumplicidade delas por consentir; se não consentiu, cedeu; se não, gostou. As justificativas são as mesmas utilizadas para o quase-estupro coletivo da estudante Geisy, na UNIBAN, em outubro/2009: "Ela provocou! Ela quis! Ela é perigosa!".

É fato que, se uma mulher é ameaçada de estupro por um homem armado, e resolve, racionalmente, ceder, a fim de preservar o bem maior, ou seja, a vida, sua atitude atuará contra ela perante o Direito Brasileiro (SAFFIOTI, 2008). A vítima do sexo masculino também sofrerá semelhante constrangimento, por ter sido "usado" como uma mulher. Nas palavras de Daniel WELZER-LANG: Os papéis sexuais estão muito definidos na maioria dos indivíduos, independente do gênero biológico a que pertencem. A mulher que “provoca” passa a ser não mais a vítima, mas a culpada pela situação em que sua passividade, tão festejada, a conduziu.

A sociedade adota uma noção de gênero, na qual a imagem do homem é do caçador, forte e herói; e a mulher é a presa, a conquista. Os papéis sexuais estereotipados colocam as meninas em desvantagens para se protegerem, sendo muitas vezes responsabilizadas pela agressão. O comportamento esperado é que a mocinha deva ser dócil, meiga e boazinha, comportar-se como caça e presa, ao mesmo tempo em que deve impedir a agressão sob pena de ser vista como culpada.

É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser associado a uma mulher. O feminino se torna até o pólo de rejeição central, o inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma mulher e ser (mal) tratado como tal (...) É assim que na prisão um segmento particular de jovens homens, localizados ou designados como homossexuais (homens ditos afeminados, travestis...), homens que se recusam a lutar, ou também os que estupraram as mulheres, dominadas, são tratados como mulheres, violentados sexualmente pelos chefões do tráfico, roubados. Freqüentemente, eles são apenas colocados na posição da "empregada" e devem assumir o serviço daqueles que os controlam, particularmente o trabalho doméstico (limpeza da célula, da roupa...) e os serviços sexuais.

(LIMA, Fausto Rodrigues de. O novo estupro na ótica constitucional . Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2358, 15 dez. 2009. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2010.)

Cito novamente artigo acadêmico, para fundamentar que a violência, no caso do estupro, engloba a violência psicológica, no caso, a manipulação:

A diferença de gênero é arbítrio cultural, o modo como as sociedades ensinam meninas e meninos a se enxergarem e ao sexo oposto é o que determina se esta sociedade será mais ou menos igualitária ou sexista. Os casos de violência de gênero e sexual, quase na sua totalidade vitimizam as mulheres. Mas isto significa que as mulheres devam ser colocadas como vítimas passivas? Até 1998, a mulher era colocada como vitima de violência, o próprio nome do Programa implantado pelo Ministério da Saúde: PAMVVS – Programa de Assistência às Mulheres Vítimas de Violência Sexual revela que a mulher não é pensada em termos de sujeito e agente. Na recente reformulação da Norma Técnica (2004), o programa se reestrutura para atender “pessoas em situação de violência”. A introdução da situação de violência substituindo a vítima, destaca a circunstancia vivida sem vitimizacao e infere um caráter relacional à violência. Entende-se que a mulher não entra na relação como elemento passivo, mas atua na construção da violência, mesmo sendo a parte dominada dentro da assimetria de poder nesta construção( D’Oliveira, 1997). A idéia de vitima associa-se historicamente a figura da mulher, no campo jurídico todos são réus ou vitimas, no campo da saúde:

“ a tomada de qualquer sujeito na condição de “vitima” é significa-lo não como sujeito plenamente potente, isto é, de deter autodomínio e soberania de decisões, daí que se perpetue a noção de mulher como um sujeito incapaz, à semelhança da criança, dos doentes, ou dos loucos, em maior grau! Incapazes de decisões, incapaz do pleno domínio de si... necessitando eternos tutores”.(Schraiber et, ibid).

O papel de vitima legitima e explica uma cultura da proteção e dependência que marca o papel feminino, a mulher tida como infantilizada, sujeito social incompleto, carecendo de vigilância e educação rigorosas.

(Perfil da Violência Sexual na Paraíba: levantamento dos crimes entre 1998 e 2005. Loreley Garcia, Rosa F. Gomes e Alexandre Paz Almeida http://soscorpo1.tempsite.ws/Adm/userfiles/18.pdf)

No entanto, estamos ainda longe de uma sociedade que permita tal interpretação.

A própria Lei Maria da Penha, que além de não conseguir efetivar os mecanismos de proteção às vitimas, tem sido restringida em sua interpretação, para não oferecer proteção ampla. Vimos o exemplo recente da vítima Eliza Samudio, que antes, de "desaparecer", provavelmente assassinada, conforme concluíram os responsáveis pela investigação, em MG, teve seu pedido de medida protetiva negado pela justiça do RJ.

Se fosse em MG seria diferente? Não creio... infelizmente.


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