quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Gostosa, delícia, linda!

Encontrei o texto abaixo outro dia, pesquisando para um caso de assédio verbal de criança. 
Vamos ver o teor do artigo:


DANO MORAL NO ASSÉDIO SEXUAL

Severiano Aragão
Juiz do Tribunal de Alçada Civil do Rio de Janeiro


Só excepcionalmente se pode conceber a reparação do dano moral em decorrência do assédio sexual. O jurisfilósofo Paulo Mercadante ressalta a nossa formação latina, com machismo exibicionista, explicando porque não deva prosperar o sancionamento reparatório do costumeiro assédio sexual praticado pelo homem brasileiro.
Bem diversa a tradição dos países anglicanos, da linha protestante, onde se idolatra o pudor e recato feminino ao extremo.

Que não se diria da clausura a que se submete a mulher em países de cultura muçulmana.
O nosso sistema jurídico só cogita de tipicidade na "importunação ofensiva ao pudor, em lugar público" como contravenção penal (Dec.Lei 3.688, com a pena de multa ).
Ensina o desembargador Manuel Carlos da Costa Leite, em sua notável obra "Leis das contravenções Penais", 1ª ed, RT, 76-pp. 394-398:
"A vida moderna impõe constante contato dos indivíduos (...), aproveitando-se os punguista (...) e hoje, principalmente, os mal-educados, os libidinosos, para satisfazerem - quando não o fazem com palavras chulas e pornográficas - suas tendências lascivas. Destes, são as mulheres as principais vítimas, sofrendo os mais lavados assaltos aos sentimentos de pudor e decoro".
Fala-se em "acostamento", "apalpações e esbarrões ofensivos" e todo um arsenal de ataques de baixa moralidade.
O pudor ou pundonor faz parte da decência e da integridade da mulher, mais ou menos agredido, em conformidade com o grau de cultura do povo.
A jurisprudência afasta o crime de corrupção de menor de 14 a 18 anos ( art.218 CP), quando o agente se limita a simples convite (...)para a prática de atos sexuais.

No mais, a lavra pretoriana é marcante.
a) Diz-se que a (o)ofendida (o)"é o único a poder aquilatar da situação de ter sido ou importunado "(RT 214-403).
b) "A contravenção de embriagues (art.62) absorve a da importunação" (art 61) ( RT 215-218).
c) "O réu, apertando, no ônibus, a perna de uma senhora, praticou bolinagem, deve ser condenado" (setença do Juiz Ítallo Galli, proc.6625 - 12ª V.Crim. SP, de 21/06/54, ap cit p.397).
d) "Quem persegue moça, com palavras de gracejo em contatos ofensivos ao pudor, pratica a contravenção (PROC.2823, sentença de 30/05/1950, Crim. SP - Juiz Olavo Lima Guimarães( op.loc.cits).
e) Quem faz propostas desonestas a uma mulher, viola o art.61, L.cp.proc6959, 11ºCrim. SP - setença de 28/12/53 - Juiz Daniel Carneiro Sobrinho (op. Loc. Cits).
f) "O réu, por trás abraçou a vítima que pediu socorro. Praticou a contravenção do art.61, (setença dos mesmos Juiz e vara).
O típico do crime de "ato obceno em lugar público" (art.233,C.P) abrange uma gama variada de condutas cotidianas, a saber:
a) "masturbação visível" ,(RT, 592-350);
b) "apalpação sexual ou bolinação"(RT, 420-248);
c)"mordiscar os seios da companheira em público" (JTA Crim. SP,23 - 136);
d) "apalpar as nádegas" (RT, 537-332);
e) "Esfregar o membro da vítima em local público" (JTA Crim. SP - 55 - 309);
f) "exibição de órgãos genitias " (JTA. Crim. SP - 20-210)
g) "levantar as saias da vítima" (JTA,Crim, SP, 21-360).
Tanto na contravenção por importunação como no crime por prática de ato obsceno em público, da condenação do réu (art. 91 - I, CP) decorrem efeitos extrapenais ou reflexos, dentre os quais a reparação da dano "ex delicto". O "quantum beatur" indenizatório, em nível de dano patrimonial (efetivo material ), deve ser estabelecido observando-se os arts.159,15 C.Civ. e 5º, XLV C.F. Nesse sentido, costuma-se asseverar que a condenação penal irrecorrível faz a coisa julgada a cível.
Essa reparação civil nada tem a ver com a reparação de dano moral, por assédio sexual, situação jurídica a ser resolvida"de juri constituendo."
A doutrina, como espelhada em Clayton Reis ( "Dano moral ", 4ª Ed. Forense - 94) enfatiza os reflexos sociais dos danos morais, a ser punido para redimir e equilibrio social.
"A composição dos conflitos sociais visa estabelecer, no estado um ponto de equilíbrio das forças confrontantes (...). Todo agrupamento humano possui moral própria, produtos das heranças históricas sociológicas de cada grupo (...). A realmente civilizada, segundo Solon Plutarco ("apud" Aguiar Dias - Da responsabilidade civil, 8ª ed. - v.II - Forense - Rio - 1987, p.14) é aquela em que todos os cidadãos sentem injúria feita a um só, em que todos exigem a sua reparação, tão vivamente como aquela que a recebeu." (op., ant. cits, pp.100 -101).
O assédio sexual é forma grosseira de molestamento, importunação, agressão a liberdade sexual e sentimental das pessoas, mais ocorrentes contra a mulher, posto que em relação ao homem, se torna indiferente; e se voltado tal molestamento ou atentado contra o menor, pode ser classificados dentre os típicos criminais protetivos do incapaz.

Considerando que a condenação cível por dano moral, abarca:
1º) um sentido reparatório-sucedânio de certo simbólico (doloris, honoris);
2º) um elemento de coerção estatal inibidor dessa prática ilícita e anti-social, verdadeiro preceito proibitivo ("jus prohibendi") e
3º) sanção pecuniária pelo dever de não agredir o próximo (quase delitualmente) em seus bens pessoais absolutos (respeito, honra, recato, dignidade, privacidade, intimidade) como a característica maior da liberdade individual íntima. Entendemos que, como jus novum et especiales, só especialmente o assédio sexual dará lugar a condenação reparatória.
Aí deverá atuar o prudente arbítrio do magistrado, destacando logo o que configura crime para remeter a sede própria, e, quanto ao resíduo cível de conduta desviada agressiva, poderá preceituar sanção reparatória. Mas é preciso partir dos padrões sócio-culturais verificáveis (comportamento do homo médius e não do "homoconstantíssimus").
O assédio sexual relevante, como dano moral, será agressão ou ofensa, consciente e injustificável, quase - delitualmente, desenhando-se como atentado à paz, à liberdade, ao sentimento, à dignidade íntima da mulher, quando animalesco, primário, grosseiro, injuriante, anti-social e insuportável.
A condenação tem a natureza de um pare ("stop"), antes que a sanção pecuniária possa ceder o passo às penas da esfera criminal. Sob o ângulo patrimonial, a reparação em exame se aproximaria do dote ou de valor de afeição dos arts. 1.548/9 e 1.543 C.Civ. num limite menor.
Em conclusão, no país, sem dúvida nenhuma, onde mais se comete impunimente ultraje público ao pudor (art. 233,CP), mediante exibicionismo libidinoso, agressivo, parece aceitável que, somente por exceção, seja cogitada a reparação civil do dano moral por assédio sexual (importunação, molestamento ou ultraje ao pudor individual da mulher).
É que o assédio, o boquirrotismo, a falação inconseqüente, "elogios", "apelos", a "exaltação" das mulheres, as "cantadas inocentes", sem ameaça ou violência real, não merecem ainda enquadramento legal punitivo.

Cumpre meditar o radicalismo de fora, onde até o beijo de crianças dá lugar a ação penal, mas preserva os nosso valores, que, no particular, exprimem a alegria da raça, o amor à mulher e à beleza, faltando apenas conter os roubos e primarismo injuriante que, a pretexto de elogiar ou conquistar, pode ferir ma dignidade e respeito devidos à mulher brasileira.
Temos certeza de que os excessos serão punidos civil e criminalmente, quer como consequências ou efeitos da condenação penal, quer através da ação autônoma de dano moral, com espeque na lei maior civil.


Bem, bem, bem. 
O texto é de antes de 2002, já que cita o artigo 1548 do antigo CC, do saudoso, ou nem tanto, Clóvis Beviláqua:


Art. 1.548.  A mulher agravada em sua honra tem direito a exigir do ofensor, se este não puder ou não quiser reparar o mal pelo casamento, um dote correspondente à sua própria condição e estado: (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919)
I - se, virgem e menor, for deflorada.
II - se, mulher honesta, for violentada, ou aterrada por ameaças.
III - se for seduzida com promessas de casamento.
IV - se for raptada.
Art. 1.549.  Nos demais crimes de violência sexual, ou ultraje ao pudor, arbitrar-se-á judicialmente a indenização.

Acho incrível pensar que dispositivos como estes ainda tinham validade até o século XXI!
Mas era a tônica, não é? A única coisa que valia na mulher era a honra (em geral, nem a dela, mas a da família, do pater familias), se perdeu, era uma vez. E dá-lhe legítima defesa da honra e absolvição por homicídio, dá-lhe casamento da vítima com o estuprador, impedindo a ação penal, entre outras cositas mas.

O caso que me levou a encontrar esse artigo foi o de um homem de 61 anos que ofereceu a uma criança de 9 anos um copo de água de coco, e disse à menina que ela "era muito linda, gostosa, delícia".
Fim do mundo, né??
O crime?
Aliciamento de menor, Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 241-D.  Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

 Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
 Parágrafo único.  Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
 I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
 II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)





A lei 11.829/2008 trataria, especificamente, do combate à exploração sexual de crianças pela internet, conforme dispõe (este trecho que eu esqueci o nome jurídico disso...)
Altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, para aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet.

Pois então.
O homem, adulto, já até idoso pela lei 10.741/2003, pai e avô, ofereceu à criança, no ponto de ônibus, no sol rachando do meio-dia, um copo de água de coco, da barraca em frente. E disse à menina que ela é bonita. Se disse gostosa, se disse deliciosa, tudo depende do tom, não é? Da intenção?

O artigo fala em assediar criança (legalmente, só menor de 12 anos é criança), com o fim de com ela praticar ato libidinoso. E fala em "qualquer meio de comunicação". Isso inclui a comunicação verbal? Ou só se for por internet (chat, orkut, msn, etc)? 

Seria típico do nosso legislador: se o adulto vira para a criança e fala, na lata, uma proposta de sexo, com a intenção de concretizar, não é crime, se não chegar a tocar na criança. Se escreve no computador, a mesma coisa, só que com certo grau de dificuldade na concretização, seria crime. É isso? Entendi errado?
Quem não fala "delícia" com uma coisa fofa dessas? 
Bem, há entendimentos para todos os gostos (bons e maus). Eu entendo que a comunicação verbal presencial também seria crime. 
Mas só se houver a intenção. E como vamos descobrir a intenção? Avaliando tudo, né pessoal! Local, horário, condições, etc. 
Fui parar na Delegacia de Mulheres por causa disso. Fiz o flagrante todo, a mãe queria matar o homem (ela não ouviu a frase, estava ao telefone na hora).
A menina disse que o homem falou: "Você é muito linda. Gostosa. Deliciosa." 
Ela repetiu como um automato, sem entonação. Ele não colocou as mãos nela.
E eu fiquei: poxa, se um cara qualquer me chama de gostosa eu fico p da vida! Imagine, chamar uma criança de gostosa!! Vou prender!

Mas então, vamos observar o quadro, e pensar que, se por um lado, que bom que as pessoas estão sendo mais cuidadosas, por outro, estão bem paranóicas. 

Eu chamo minha afilhada de gostosa e delícia o tempo todo. Digo que tenho vontade de morder! (Digo isso pro meu cachorro tb. Será que além de predadora sexual infantil eu tb sou sou adepta do bestialismo?)
O contexto é a chave. 
E fiquei pensando na incoerência dos nossos tempos.

O texto do juiz é antigo, mas não tão antigo. Ele tolera as cantadas chulas, só entendendo que seriam importunação, logo, contravenção (menos grave que crime), se houvesse efetiva lesão. Imagino que, para ele, um simples "gostosa" não seja ofensa. Mas se for com a esposa, filha ou neta, imagino que fosse. Se ele falar isso, sem a menor maldade, para uma menina, vai achar a lei justa? Não, vai achar um absurdo. (não sei quem é o juiz e não estou falando nada dele, peguei o texto apenas como exemplo e não estou insinuando nada, é apenas o que entendo ser o padrão médio do pensamento masculino tradicional, certo?)


Não estou afirmando que é normal esse tipo de situação. Muito antes pelo contrário. Estou dizendo que o aumento dos crimes (e das denúncias, o que é bom!) não significa que devamos sair em uma caça às bruxas, desenfreada, com possíveis consequências graves (eu lembro da história da Escola de Base).


Sexo com criança (e adolescente menor de 14 anos) é crime. Gravíssimo. Tem que ser punido com severidade;


Vamos começar a mudar nossa cultura, então? Perceber que a exploração sexual não é só de crianças e adolescentes?

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